24 de maio de 2012

O Pagador de Promessas faz 50 anos


 
Agora em maio fez 50 anos que o Pagador de Promessas, dirigido por Anselmo Duarte, ganhou a Palma de Ouro em Cannes.

O filme conta a história do lavrador baiano Zé do burro (Leonardo Villar). Seu burro estava muito doente e Zé é aconselhado a fazer uma promessa para Iansã num local de candombé. O burro sara. Então Zé se lembra que Iansã é Santa Bárbara, e decide pagar a promessa: carrega uma cruz “tão pesada quanto a de Cristo” até a igreja de Santa Bárbara na capital.

Cumprir a promessa significava levar a cruz até o interior da igreja da padroeira, mas o padre Olavo (Dionísio Azevedo) se recusa a acolher uma promessa feita “num local de feitiçaria” e proíbe Zé de entrar na igreja com a cruz. Mas para Zé Iansã e e Santa Bárbara são a mesma pessoa e não há por quê não entrar.

Praticamente toda a ação se dá nas escadarias que sobem da rua até igreja, ligando simbolicamente o lugar do povo ao lugar do poder. O povo vem da rua para subir a escadaria. Apenas o padre desce da igreja para a escadaria. O longo declive criado pela escadaria dá o forte sentido de desequilíbrio ao duelo e permite ao diretor jogar com os com planos à medida em que o conflito evolui. Os diálogos de Zé com o padre são visualmente atirados para cima ou para baixo marcando os volteios do combate.



Zé do burro era uma pessoa do povo presa ao dever individual da promessa. No embate com a doutrina da Igreja esta posição evolui: ele é levado a defender a sua maneira de interpretar a relação de um homem com a religião. Sem perceber claramente, faz do seu ato uma demanda que passará a ser de muitos.

Zé do Burro é aquele que, mesmo sem saber, arrisca a sua vida por um bem que, afinal, é reconhecido por muitos: querer interpretar autonomamente a relação do homem com a religião sem a condução por outros.

Zé é morto pela polícia. O final do filme mostra como o povo preserva o seu gesto e o faz evoluir: seu corpo é carregado sobre a cruz para dentro da igreja. É o corpo de um homem que se dizia católico, que jurou para Iansã, mas procurou Santa Bárbara. Ele é carregado por mães de santo e capoeiristas para dentro de uma igreja católica. Tudo se preserva, mas algo mudou.

19 de maio de 2012

Algo do desencanto e o possível desvelamento da ilusão em “Madame Bovary” e "As duas faces da felicidade" de Agnès Varda



Emma Bovary
 
         Emma, filha de fazendeiro, educada em convento, leva uma pacata vida ao lado de seu pai e casa-se com Charles Bovary, médico de província. Impregnada pelas leituras românticas que devora e alimentando uma visão apaixonada e lírica da existência, ela sonha com um casamento que combina com suas fantasias da juventude. Mas a vida de casada degenera rapidamente e se torna insípida e monótona. Charles, homem sem ambição, não corresponde às suas aspirações de ter uma vida estimulante.
         A ida ao baile dado no Chateau de la Vaubyessard marca uma etapa determinante na historia de Emma porque a faz vislumbrar os charmes tentadores da vida privilegiada que ela só conhecia nas páginas dos livros. Essa noite ressoará por muito tempo em seu espírito e, para se aproximar mais da imagem e da vida que idealizou para si, Emma começa a gastar o que tem e o que não tem em roupas e em aventuras com seus amantes. Suas aventuras amorosas são para ela uma fuga do casamento insatisfatório e da realidade que ela não sonhou para si.  Seus devaneios a levam à ruína quando ela acaba se vendo endividada e comprometendo os bens da família. Sem ter a quem recorrer - todos os seus amantes a abandonam - ela, em um último ato de desespero, ingere arsênico e prova de uma morte lenta e agonizante.
         “Madame Bovary”, romance mais conhecido de Gustave Flaubert, começou a ser publicado em 1856 em forma de folhetim na Revue de Paris e logo conheceu o sucesso. Parte dele graças ao grande escândalo causado por um processo público. O romance foi processado pelo realismo vulgar e chocante dos seus personagens, mas foi absolvido. Balzac havia sido processado pelo mesmo motivo com seu romance “A mulher de 30 anos” que faz parte da sua obra “ A comédia humana” e foi em sua homenagem que Flaubert colocou o subtítulo de “os modos do campo” em Madame Bovary.
         Ao retratar os costumes de uma determinada classe social de seu tempo, Flaubert tinha como intenção falar sobre o que ele chamava de “existência sem brilho, pálida e triste das pessoas comuns”. Falar sobre esse universo e, acima de tudo, retransmitir as sensações presentes nele é o verdadeiro interesse do autor. Mas o que ele consegue ao escrever o romance é mais do que falar sobre o mundo da pequena burguesia rural francesa do séc. XIX. Ele toca algo mais vasto que perpassa as classes sociais e que ele transforma em matéria central do enredo: o reino da mediocridade, o universo cinza do homem sem qualidades. E é por isso que o livro de Flaubert pôde ser considerado como o fundador do romance moderno. Porque ele foi todo construído ao redor da esquálida silhueta do anti-herói.  
         "Não são as grandes tragédias que compõem a Infelicidade, nem os grandes acontecimentos que fazem a Felicidade, mas é o tecido fino e imperceptível de mil circunstâncias banais, de mil pequenos detalhes que compõem toda uma vida de tranquilidade radiosa ou de agitação infernal." Essa convicção de que a vida não é feita só de grandes extremos e sim da acumulação gradual e insensível de fatos cotidianos e banais, que o pequeno e o opaco são mais próprios ao humano do que o grande e o luminoso, foi o que motivou Flaubert a compor o maior romance de seu século, que influenciou e influencia escritores até os dias de hoje. Por isso “Madame Bovary” é uma mistura de hipocrisia, pequenas misérias e sonhos medíocres. É um romance baseado na “normalidade".  
         Ainda sobre a modernidade do livro, um dos fatores importantes a ser levado em consideração na análise do romance diz respeito ao estilo. O autor opera uma revolução estética uma vez que elabora com extrema sofiticação e apuro a forma para tratar de um assunto considerado nada sofisticado, muito distantes dos grandes temas abordados pelo movimento literário precedente, o Romantismo. Outro ponto relevante no romance é o questionamento que o próprio faz para si mesmo sobre a função da literatura. Flaubert se vale do romantismo de Emma (influenciado por suas leituras) como um objeto realista e determinante para a condução das ações da personagem.
Podemos afirmar que o séc. XIX foi o apogeu da literatura. Em um contexto onde as mudanças sociais eram cada vez mais rápidas e significativas a literatura realista foi uma “resposta a uma certa crise nas relações dos indivíduos com a tradição que, até então, amparava suas escolhas de vida e sua visão de mundo.” (1) Dentro desse contexto, essa literatura confrontava as mulheres oitocentistas com duas realidades: o modo de vida burguês, as funções domésticas e o papel que lhes era destinado dentro daquela sociedade e um espaço onde era possível entrar em contato com “desejos desviantes da norma, e o desajuste dos sujeitos em relação à tradição, ao desejo do Pai, aos lugares que se espera que os sujeitos/leitores/personagens, ocupem na trama simbólica.” (2)
         Com Emma, Flaubert corporificou e criou mecanismos de identificação com o público consumidor dessa literatura - mulheres, em sua grande maioria - e proporcionou “às vezes consolo, às vezes confirmação para o desamparo dos leitores seus contemporâneos.” (3). Freudiano “avant la lettre” ele fez de sua personagem uma representação das mulheres de seu tempo, representação esta que culminou com a figura das histéricas tratadas por Freud meio século depois do lançamento de “Madame Bovary”.


Agnès Varda

         Em “As duas faces da felicidade”, ao contar história de um homem casado, pai de duas crianças, que se envolve em uma relação fora do casamento e deseja manter as duas mulheres como uma maneira de obter “a felicidade plena”, Agnès Varda, assim como Flaubert, volta seu olhar sobre a mediocridade do cotidiano dos homens comuns para dizer algo de seu pensamento sobre a vida.     Assim com o romance oitocentista, forma e conteúdo trazem mensagens diferentes. Existe um contraste entre o drama encenado e a leveza da técnica utilizada, característica da Nouvelle Vague, assim como a luminosidade das imagens e, sobretudo, a aparente falta de julgamento colocado sobre as ações dos personagens.
         A harmonia na composição dos quadros, na combinação das cores, nos rostos e gestos dos personagens remetem a uma idealização característica do melodrama, que nesse caso, vem em uma referência clara à tv e aos melodramas Hollywoodianos dos anos 50. Na primeira parte do filme, os personagens parecem habitar as páginas dos livros que inspiravam os devaneios de completude e felicidade proporcionados por um casamento perfeito ambicionado por Emma Bovary.
         Mas no filme, Varda coloca esse desejo de completude absoluta, sobretudo no personagem masculino. Ao não conseguir abrir mão de nenhuma das mulheres, ele explica à amante: “Sinto amor pelas duas. A felicidade se acumula (...) Thérese é como uma planta vivaz e você é como um animal em liberdade. E eu amo a natureza.” (4) Sua felicidade só é completa com a união das características distintas das duas, que ao contrário de se anularem, complementam-se .
          A felicidade perseguida é filmada em cores primárias, como os sentimentos dos personagens: inteiros, violentos. Essa vida idealizada, colorida e harmoniosa contrasta com a ironia e amargura da descoberta da impossibilidade da coexistência desses dois universos. E ao final, a felicidade da família é filmada com as cores pálidas do outono. Uma Felicidade que não é alegre, longe daquela idealizada nos romances.

(1) Maria Rita Kehl, A constituição literária do sujeito moderno (2) Maria Rita Kehl, A constituição literária do sujeito moderno (3) Maria Rita Kehl, A constituição literária do sujeito moderno (4) Transcrição da legenda do filme “ As duas faces da felicidade





17 de maio de 2012


Lust, Caution... Lacan!


No post sobre Hegel de 23/abril neste Blog falei que a consciência-de-si surge quando o sujeito deixa de se ver separado do mundo e se compreende como ação. Ação negadora e formadora. O sujeito encontra o seu sentido  enquanto age no mundo.  É uma antropologia diferente daquela do homem grego, que primeiro se conhece para depois agir. A ação em Hegel é formadora: lutar e arriscar a vida (biológica) pelo “prestígio” – um bem ou valor socialmente aceito e reconhecido. Animais arriscam a vida por alimento ou pela prole, mas nunca por um bem não natural como a liberdade.

Qdo a jovem Mak Tai Tai, a personagem de Desejo e Perigo (Lust, Caution. Ang Lee, 2007) vai ao encontro do policial Yee, seu inimigo mas futuro amante, ela está decidida a arriscar a sua vida (biológica) por “prestígio”, pelo ideal de liberdade.

No encontro do nosso grupo em 8/maio concordamos que Mak termina por se envolver afetivamente com o seu inimigo.  Há um gozo? É duplo, ou melhor, triplo?  Há desejo (Begierde) carnal (sua primeira relação sexual com Yee foi praticamente um estupro), o prazer (Lust em alemão, lust em inglês) – no sentido de amor (concordamos que ela fica amorosa de Yee) e a luta (Kampf) reconhecimento dos companheiros da sua célula combatente.

Nosso colega Marcos do grupo de cine e psicanálise achou que o romance entre ambos pouco crível. A paixão dos dois é improvável? Ele, um policial, nunca investigaria a vida de sua amante? Ela poderia circular livremente entre os dois lados da guerra? Decerto o filme usou fórmulas: dormindo com o inimigo, amor impossível, a mulher cuja lei do coração se choca com a lei da Cidade (Antígona) e tem um destino trágico; belas e fortes cenas de sexo, cenários requintados para cidades na paupérrima China de 1942. De todo modo um filme com elementos requintados.

Aprendemos neste encontro do grupo que Mak Tai Tai – estudante e atriz muito jovem – está em busca de reconhecimento. eEntra na luta durante a delicadíssima situação da guerra e da resistência, e parece que encontra o reconhecimento justamente no seu inimigo: decide abandonar a luta da Resistência quando poupa a vida de Yee.  Entre a luta e o prazer,  ela opta pelo gozo do prazer

Mak arrisca a sua vida novamente quando poupa a vida de Yee, mas desta vez não mais por “prestígio”, não mais por valor sociamente reconhecido. Ela o faz por um gozo que a irá perder: “Lança-se, pois, à vida e leva à plena realização a individualidade pura ... mais do que produzir para si a sua felicidade, imediatamente a colhe e desfruta. As sobras das ciências, das leis e dos princípios que se interpõe entre ela e a sua própria efetividade , desvanecem ... Ela então toma a vida como se colhe um fruto maduro...”. Não é como uma outra consciência-de-si que Mak deseja Yee, e isto será a sua perdição. “O prazer desfrutado possui ... [a significação] negativa de ter suprimido a si mesmo [1].

Mak deseja poder encontrar a sua essência neste tipo de relação, mas encontra apenas  a si transformada um objeto-natural. Esta atividade do seu desejo consegue o que se esperava: eles retornam ao dado-natural que são os seus corpos amantes. Não há um projeto de reconhecimento a dois que possa ser visado. Apenas dois corpos amantes, Yee não se põe no projeto amoroso. Recua. A troca amorosa não é.

Ao poupar a vida de Yee, Mak decidiu abandonar a lei do seu grupo social e se entregar ao que Hegel chama de necessidade: “É o que se chama necessidade;  com efeito, necessidade, destino etc; que são justamente uma coisa que ninguém sabe dizer o que faz, quais suas leis determinadas e seu conteúdo positivo”.[2] Este parece ser um dado do roteiro do filme: ela decide se entregar ao seu inimigo. Pode parecer pouco crível, como um filtro mágico ou a mão do destino. Difícil saber.  Talvez, então, estamos no registro do desejo como “turvação” (Sartre).

 Ou o desejo como “opacidade” (Lacan): todo sujeito é produto de uma cisão da “unidade libidinal” original do bebê com o corpo da mãe. Grosso modo, a repressão a este ser erótico e a consequente introjeição das normas sociais cria esta cisão (consciente-inconsciente) mas é justamente este processo de sociabilização que nos torna um sujeito, socialmente falando. Doloroso. O sujeito se constitui neste processo de afastamento, rebaixamento e negação da pulsão. O desejo constitui para Lacan um movimento no sentido de retornar a este mundo pulsional original que foi encastelado no inconsciente pelos sucessivos processos de repressão/sociabilização  a que somos submetidos na infância. Logo, a satisfação plena do desejo implicaria na dissolução do próprio sujeito que então retornaria, no limite, à unidade amorfa e libidinal.

A opacidade é justamente a impossibilidade do sujeito fazer uma unidade do que vive conscientemente com o material do seu inconsciente. Logo, Lacan entende que a dialética de Hegel não pode operar aqui: não há síntese possível que o sujeito possa operar se são estruturas diferentes. Ou seja, a consciência-de-si hegeliana trata apenas do consciente e o inconsciente não é considerado. Pior para Hegel, melhor para o nosso filme: agora entendemos o desejo que move a união improvável de Mak Tai Tai e Yee: está coberto por um véu de “opacidade”.


[1] Hegel, Fenomenologia do Espírito, cap. V.
[2] Idem.

9 de maio de 2012

KAR WAI E LONESOME

Vários comentadores dizem que Kar Wai se inspirou nesse filme mudo de 1928 para produzir o seu Amor a Flor da Pele.

Eu vi o filme (é um pouco complicado..pq tem que ir vendo aos pedaços no You Tube)...mas vale a pena. Claro que é um melodrama...mas há mais afinidades do que podemos imaginar num primeiro momento.

Boa sorte para quem se aventurar..


Em 1 de maio de 2012 14:54, Marcos Carlini <m-carlini@uol.com.br> escreveu:
Mais uma coisa. Sei que vcs não deram muita bola pro Lonesome...o filme que o Kar-Wai diz ter se inspirado. É de 1928...ele está na íntegra no You Tube...Vcs entram nesse link...e tem um jeito lá de ir para o filme...


Ou então..podem ir direto ao site do You Tube   http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=iNDzHLzsHQc

LUST, CAUTION E ATRAIÇOADOS

Muito embora sejam filmes muito diferentes, vale uma pequena olhada no filme de Costa Gravas onde a questão do interdito também está posta.


Tem em DVD...e embora esteja muito distante da sutileza de Lust, Caution....aborda o tema do interdito. Aqui, talvez, possamos discutir a inversão de papéis. Ele a seduz...com armas (cultura?) muito diferentes das que vimos no filme dessa semana (natureza?).

Aí vai a fantástica sinopse do Wikipedia (melhor que o IMDB)

Marcos

Agente do FBI designada para investigar a morte de um radialista de origem judaica, conhece um membro de uma organização racista, que extermina judeus e negros, mas fica em conflito, porque envolvera-se com ele antes de saber de sua vida criminosa

Atraiçoados
Betrayed
Atraiçoados (PT/BR)
1988 •  cor •  127 min 
Produção
Direção
Roteiro
Elenco original
Género
Idioma original
Música
Cinematografia
Patrick Blossier

2 de maio de 2012

Relação Intersubjetiva e Amor em Sartre: a propósito de Dolls de Takeshi Kitano






Eu olho esta folha de papel diante de mim e percebo a sua forma e a sua cor. Ela se oferece ao meu olhar como existente e constato que o seu ser, o que ela é, não depende de mim, ela é um outro que não sou eu. Ela está presente diante de mim mas é inerte. Esta forma inerte pode ser observada, analisada e compreendida como se quiser, mas não se alterá o fato de que ela é uma coisa que não depende da minha espontaneidade nem de qualquer impulso meu em sua direção.

É praticamente com as palavras acima que Sartre inicia um livro chamado A Imaginação. Ele explica que há um fato fundamental da nossa consciência que é ela ser intencional, ou seja, ela não é inerte, ela é ativa e “impulsiva”. Todos os atos da consciência nos seus contatos com o mundo são, então intencionais, ou seja, a nossa consciência sempre é consciente de alguma coisa. Podemos estar conscientes desta alguma coisa de vários modos (intencionais): ora vejo esta folha como simples papel que serve para queimar na lareira, hora a vejo contendo as minhas idéias, ora ela, vazia, me lembra da minha incapacidade de escrever.

Sartre nos recorda deste fato fundamental da consciência para combater um modo de pensar segundo o qual os objetos do mundo são captados pelos nossos sentidos e transformados em algo semelhante à nossa mente, como uma aranha transforma o corpo das suas presas na sua própria substância envolvendo-as lentamente na sua baba. Ou, mais modernamente, como os computadores transformam filmes, fotos, voz e texto sempre na mesma coisa, na mesma substância: arquivos cheios de bits. Não podemos fazer entrar os objetos dentro da nossa consciência fazendo-os semelhante a ela simplesmente porque a consiência e os objetos do mundo são de naturezas diferentes.

Assim, Sartre mudará o approach: a nossa consciência se dirige para o mundo de forma intencional: ora esta folha de papel representa a mais pura brancura, ora foi uma árvore cuja morte lamentamos, ou então a minha incapacidade de nela escrever as minhas idéias: “Eis que, de repente, estas famosas reações ‘subjetivas’, ódio, amor, temor, simpatia, que flutuavam dentro da salmora malcheirosa do Espírito, saem: [agora] elas são apenas maneiras de descobrir o mundo”[1].

A intencionalidade não apenas uma forma como a consciência conhece o mundo:  ela é a situação de ser dos seres humanos. Em consequência não é apenas o nosso modo de conhecer o mundo, mas é o nosso desejo que está implicado fundamentalmente neste modo de ser. Pode-se dizer de modo eloquente que o nosso desejo é do mundo.

Mas então, primeiro: sabemos que os objetos “coisas” são de uma natureza diferente da nossa consciência (eles não tem este impulso, esta intencionalidade, estão numa unidade tranquila de si para si. São “inertes”). Logo, eles sempre resistirão ao nosso ato de conhece-los: nunca os conheceremos totalmente.

Segundo e mais importante aqui, o mundo é povoados de outras consciências intencionais. O mundo está povoado de outros seres humanos para os quais eu dirijo o meu desejo (os meus afetos, expectativas e projetos). Estes outros seres também dirigem seus desejos livremente para mim e outros. É assim que emerge e se coloca a questão da liberdade e do conflito entre sujeitos inerente a ela. O outro é livre para me constituir com um objeto de seus afetos-projetos, e desta sua liberdade não posso fazer nada. Mesmo que eu tenha projetos a respeito dela, mesmo que deseje respeita-la, isto já seria um projeto meu a respeito de algo alheio, o que constituiria uma tentativa de violação da liberdade do outro. Daí podemos afirmar que “por mais conflituosa que seja a relação entre pessoas, tem-se que admitir que esse conflito deriva da radicalidade da liberdade, e toda relação concreta é conflito de duas liberdades concretas”[2].

Trata-se de um patético mas muito humano jogo de forças entre consciências livres. Aqui há um fato importante que diferencia Sartre de Hegel: Sartre reconhece que “a intuição genial de Hegel é a de fazer-me dependente do outro em meu ser. Eu sou um ser Para-si[3] que só é Para-si por meio de outro. Portanto, o outro me penetra em meu âmago”, mas “A grande mola-mestra da luta das consciências [-de-si] é o esforço de cada uma para transformar a certeza de si em verdade.  E sabemos que esta verdade só pode ser alcançada na medida em que minha consciência torna-se objeto para outro”[4]. Para Sartre, Hegel ainda coloca problema da consciência em termos de conhecimento (relação sujeito-objeto): a medida do ser do homem é o conhecimento que temos dele, o que o reduziria a um objeto-para-ser-conhecido.

Sartre não concorda com isto: para ele, deve existir uma relação de interioridade de ser a ser sem que a intermediação (externa) do conhecimento: É o Mit-Sein, de Heidegger; ou seja, o ‘ser-com’. Assim, “a característica de ser da realidade-humana é ser o seu ser com os outros. Não se trata de um acaso; eu não sou primeiro ... para encontrar o outro depois: trata-se de uma estrutura essencial do meu ser”[5]. Sartre quer dizer que não haveria uma sequencia do tipo eu, em seguida o outro, em seguida nós. Ao contrário, o Eu emerge juntamente e na relação com o outro. Ou ainda, o ‘ser-com’ implica numa relação de ser a ser e não uma relação ser a objeto. Então não é que eu primeiro seja um ser que existe independente e que em seguida entra em relação com os outros. Para Sartre, poder falar deste ser que eu sou implica em falar da relação deste ser com os outros. É só daí que será possível falar do que é o meu ser. Assim, o “ser com o outro” consiste na estrutura fundamental do meu ser, ou seja, é o fundamento da relação intersubjetiva. A realidade humana é “Para-si-Para-outro[6]”.

Se o outro não é objeto, o que quer que eu seja depende fundamentalmente deste outro e eu tomo este outro como sujeito,  abruptamente Sartre nos envia para o mundo das nossas vivências, para o mundo cotidiano dos contatos humanos: “é na realidade cotidiana que o outro nos aparece”. É exatamente porque o outro não é objeto (é sujeito) é que ele é livre. E se meu ser se constitui no outro, ele só poderá se constituir num outro-sujeito, ou num outro-livre, o que é o mesmo. Desta forma, a liberdade do outro é condição fundamental para a constituição do meu ser. Isto terá, como se pode imaginar, consequencias importantes ao se pensar no amor.

Para Sartre, o outro aparece para mim através do seu olhar. É através desta figura do olhar que se desenvolve a dialética da relação intersubjetiva.  O “Para-outro” nada mais é do que este outro que me olha, e, portanto, que me valora, que forma uma imagem de mim, que me determina. Ele é livre para me constituir como objeto. De meu lado, posso sempre tentar colonizar o olhar do outro em função dos meus interesses e desejos agindo sobre a sua liberdade, sou livre para tentar este projeto. Trata-se de um conflito e esta relação será sempre conflituosa: “o ser-para-outro é estruturalmente conflituoso. Os antagonismos concretos, de qualquer alcance, derivam deste traço ontológico, que torna infernal as relações humanas”[7].


 

Sartre adota uma perspectiva atéia para a existência humana. Não se trata de negar a Deus, mas apenas de visar um destino que faça sentido ainda nesta vida aqui, e que eu procure dar sentido para o meu ser nesta vida aqui, sem levar em conta a existência ou não de Deus e de uma transcendência. Nós nascemos e portanto existimos. Em princípio é ser só isto, de modo que cada um tem a tarefa individual de fazer um sentido (uma essência) para a sua existência. Daí a frase famosa: “a liberdade é existência, e a existência precede a essência”. Em existência somos um ser para a morte fadado à liberdade. A essência se faz. Daí outra frase famosa, de Beauvoir: “Não se nasce mulher, se faz mulher”.

Nossos projetos neste mundo serão sempre incompletos pois temos necessariamente que colocá-los em marcha num mundo povoado por outros projetos.

É dentro deste quadro que podemos inserir a questão do desejo em Sartre.

Sendo o homem uma singularidade que se realiza no mundo (i.e. vivendo), o desejo não poderia um dado natural, nem um dado psiquico irredutível externo a cada sujeito, mas ele emerge junto com o sujeito que emerge no mundo. E já podemos entender que este sujeito emerge no mundo marcado pela falta, ou pela negatividade: ele existe, e é só isto. Há uma essencia (um ser – o ser de cada um de nós) vazia neste fato. Este ser de cada um de nós só poderá tecer a sua essência ao longo desta vida. Vivendo.

Sartre tematiza o desejo e o amor como parte das relações concretas com o outro, juntamente com o sadismo, o ódio o masoquismo e a indiferença.

O desejo não indica um Eu já constituído ou numa etapa da sua formação, mas antes um Eu que estará sempre e eternamente em processo de tomar forma na sua relação com o mundo. Nada é primeiro aqui, exceto a liberdade. E a liberdade é o ser que se faz falta, ou o ser que se faz na falta de ser[8].  Pois a liberdade não é um atributo com o qual nascemos (um universal do qual todos compartilhamos), mas ela decorre do fato de que CADA UM DE NÓS existe, então a liberdade é uma existência apenas, que se fará a medida em que vivemos no mundo, em função do mundo onde vivemos, na medida em que orientamos nossas vidas no mundo singular de cada um.


O amor é tematizado como uma atitude para com o outro. É uma tentativa de de realizar uma unidade com o outro, posso projetar a mim na presença do outro e querer “assimilar a alteridade do outro”, assimilar os seus projetos para comigo. Trata-se, para Sartre, de um projeto irrealizável: seria a realização de dois projetos de unidade numa única transcendência, o que faria desaparecer o caráter original de cada ser humano que é a liberdade: cada um estaria alienando a sua liberdade neste ser uno da transcendência. 

Este projeto de unificação será antes de tudo fonte de conflito e esta unidade tranquila de duas almas não existe. Mas para Sartre esta unidade é “o ideal do amor” e o amor é “o conjunto dos projetos pelos quais viso realizar este valor”. Tais projetos nos colocam em conexão direta com a liberdade do outro: se desejo esta unidade e se a liberdade do outro é o fundamento do meu ser, seria contraditório pensar em possuir um outra pessoa.




O que podemos pensar dos dois mendigos atados, acorrentados (bound beggars, méndiants enchâinés, vagabondi legati, mendigos atados) do belíssimo filme Dolls de Takeshi Kitano? Eles vagam. Matsumoto deixa a noiva no altar por Sawako. E começam a vagar, atados.

Não se encantam com a natureza que os circunda, são indiferentes às pessoas à sua volta.

Sawako não logra se matar e se deixa levar por Matsumoto e então começam a vagar. Aparentemente ela aliena a sua liberdade para um outro deixando-se atar e conduzir pela corda. Mas a liberdade nunca é completamente alienável, pois desejar aliena-la ainda é um projeto livre pois o desejo é sempre o desejo de um sujeito.  Nunca é possível possuir um outro deixando-se possuir. Para Sartre “a estratégia de possuir o outro fazendo-se possuir por ele necessariamente fracassa diante da dualidade insuperável de duas liberdades ou de duas consciências que não podem deixar de ser livres”[9].

Matsumoto conduz Sawako pela corda. Aparentemente anula a sua subjetividade reduzindo-a a um mero objeto aos seus cuidados. O seu gozo parece ser cumprir uma tarefa que decidou se incumbir. Ele sacrificou a sua carreira e uma vida em sociedade pelo amor de Sawako por ele. E, ao mesmo tempo, ele a conduz. Ela parece ter atingido o seu objetivo: arriscou a vida num suicídio e logrou trazer Matsumoto para perto de si. Daí em diante nada mais parece lhe importar.  Feito este pacto amoroso, eles vagam, indiferentes ao resto do mundo. Honra, glória e fortuna não são mais que montes de areia, dizem os bonecos do teatro.

Matsumoto e Sawaki não conseguem se casar, o laço que os une parece ser anterior ao vínculo social. Presos a algo mais primitivo, eles são apenas este vínculo. Há uma cena em que eles se vêem casando, mas isto não acontece de fato. Eles não concretizam nenhum vínculo socialmente aceito. Seria necessário entrar em relação com um terceiro, aquele que os casaria, para isto. O ato do casamento só se dá através da palavra, que tem o poder performático: ela transforma e portanto tem o poder da ação. Mas esta ação requer que haja um terceiro. A dupla parece não entrar neste estágio de vínculos com um outro, permanecendo no vínculo original.

O filme termina com ambos lado a lado, pendurados e inertes. Os projetos de dominação recíprocos levaram a este impasse. No mundo de Sartre nenhuma consciência triunfará sobre a outra, nenhum projeto de dominação será completo ou permanente. Nenhuma liberdade é completa e a liberdade está implícita em toda relação de dominação. Mas para ele é possível superar eticamente este conflito através de compromissos que levem em conta a radicalidade da liberdade humana, que a essência das relações entre consciências é o conflito. O sentido destes compromissos não se encontram já dados no mundo. Não adianta vagar em busca deles. Para Sartre eles devem ser construídos historicamente.

Se no limite absoluto da liberdade, ou no ápice onde as liberdades podem se encontrar está a fonte dos valores (os compromissos que se encarnam eticamente), Sawako quer situar-se para além de todo sistema de valores, exigindo que o amado "sacrifique em seus atos a moral tradicional" ansiosa por saber se o amado trairia os seus amigos por ela, roubaria por ela, mataria por ela.






[1] SARTRE, Une idée de la phénomenologie de Husserl: l’intentionalité. O conceito de intencionalidade é de Husserl, filósofo e matemático theco (1859-1938), tido como o fundador da fenomenologia contemporânea. A fenomenologia pode ser entendida como um terceiro entre o idealismo e o empirismo. Husserl afirmou a harmonia ontológica da consciência e da coisa (os dois seres – homem e mundo tem igual valor). Em 1933 Sartre encontraria na fenomenologia de Husserl um modo de descrever “esta árvore”, “este indivíduo”, “esta discussão à mesa de um café” num modo que seria – ao menos para ele – não psicológico. Na literatura seus personagens se definiriam, então, não apenas por um vivido psicológico, mas fenomenológico também.
[2] SILVA, Franklin Leopoldo, Ética e literatura em Sartre.
[3] Para-si: uma forma inocente de sujeito independente que coloca o mundo como objetos em torno de si.
[4] SARTRE, O ser e o Nada.
[5] Idem.
[6] Para-outro: é o outro me olhando e como me olha. Ao fazer isto há um processo de constituição do que sou.
[7] Silva, op. cit.
[8] A liberdade é precisamente o ser que faz falta de ser. Mas, uma vez que o desejo ... é idêntico à falta de ser, a liberdade só poderia surgir com ser que se faz desejo de ser”. O Ser e o Nada, p. 694-5.
[9] Silva, idem.

27 de abril de 2012

MELANCHOLIA

























AULA: Melancholia
CURSO: As Faces do Mal


PRIMEIRA ANÁLISE  ::  SOBRE A NOIVA E SOBRE A MELANCOLIA
A primeira parte do filme é toda baseada no arquétipo clássico da noiva. Em uma primeira camada, a Noiva representa defloração e a posse da mercadoria "fêmea" - ou seja, trata-se da aliança entre subjetividade, tribos e clãs. No filme, a noiva está exatamente no momento de travessia, lembrando que o casamento foi, por muito tempo, o ritual de iniciação da vida adulta - de menina a mulher. E essa figura também tem conexão com o título do filme. Em diversas representações medievais, a Melancolia foi representada na figura de uma noiva, os braços amorosos dos quais nunca será possível escapar. Ou seja, é uma figura que pode ser dúbia porque tanto representa a vida [defloração] quanto a face negra da Melancolia. Negra porque o conceito original de Melancolia, de acordo com os Hipócrates, significa "aquele que possui a bilis negra". Resumindo, a representação da noiva não é neutra e carrega muitas significações. 



SOBRE A MELANCOLIA  :: NÓ BORROMEANO e RSI



Segundo Lacan, essa é a lógica psicológica na qual operam os indivíduos. “Normalmente”, o humano confere significação àquilo que é Real através do Imaginário - ou seja, reveste o que não compreende inteiramente com o Imaginário. Nessa dinâmica, o lugar do melancólico é apontar o esvaziamento do sujeito quando este não possui o imaginário. O melancólico traz o escárnio e a ironia, pois seu gozo é apontar o Real. Obviamente, tudo isso tem grande relação com o discurso da Justine no final do filme ao questionar Claire sobre ouvir Beethoven e beber uma taça de vinho para receber o fim do mundo.

Na visão de Freud, ao longo do crescimento o indivíduo se depara com a falta / a castração. E para conseguir suportá-la e continuar vivendo na saúde, esse vazio é preenchido pela Cultura.
Luto é quando há a perda de um objeto que possuía a sombra fálica [alguma importância]. Normalmente, a saída do Luto se dá por meio da assimilação identificatória de uma característica/traço do objeto [introjeção] - “tudo que você é vem por meio da dor”. Claro que esse processo é inconsciente.

Toda a estrutura fílmica é montada sobre esse processo de luto e melancolia.





PRIMEIRA ANÁLISE  ::  A SEQUÊNCIA INICIAL [A LIMOUSINE]
A limousine que tenta fazer curvas é a primeira crítica estabelecida pelo diretor: a máquina que está tentando impor um caminho está para um ideal [de felicidade] que está sendo colocado em um contexto [humano] no qual não pode caber. É uma síntese da posição do Lars sobre o casamento e a felicidade como ideal do Contemporâneo,  tema esse que figura como uma das problemáticas mais trabalhadas na obra do diretor.

O campo de golf representa a natureza domesticada, a mediação entre a natureza selvagem e a cultura. E é nesse limiar em que o Lars vai filmar o final do mundo.
Toda crítica do filme se estabelece sobre o seguinte eixo: Casamento-Máquina-Publicidade-Felicidade.






ANÁLISE DOS PERSONAGENS.

_Sobre a Justine
Sendo Justine a melancólica central, não é irônica sua profissão ser publicitária: Justine é aquela que constrói o imaginário mas que, no fundo, não consegue monta-lo para si mesma.

A personagem começa o filme tentando viver o ideal, mas no meio da trama ela desmonta tudo. E o primeiro passo para esse desmonte é o discurso de sua mãe no casamento, uma mãe clínica do sujeito melancólico. No meio de todo esse processo ela pede ajuda para apenas uma pessoa: o pai, sujeito esse que claramente não ocupa o lugar da função paterna.

_Sobre o Pai
O discurso inicial do pai é o primeiro indício dessa ausência, ao passo que ele se refere a filha como “ a pequena menina", quase uma boneca, um brinquedo. Discurso esse coroado por "nunca te vi tão feliz", frase que pode ser lida como "você tem que ser feliz". Em seguida ele desloca sua fala para o próprio problema - é como se ele fosse aquele que só consegue ser pai quando consegue ver o outro [a figura do narcísico] . E isso fica ainda mais claro ao longo do desmonte do casamento, pois a Justine clama por ajuda, grita e até escreve, mas esse pai não lhe dá ouvidos. E, de certa forma, esse sujeito Justine não é visto por ninguém.

_Sobre a Mãe
A mãe é o auge da lucidez e da racionalidade técnica que desmontam o afeto instintivo clássico da figura materna. É a racionalidade que desmonta a construção imaginária do ritual-casamento. “Para que o casamento? Para que tudo isso?”. Ela desmonta o Imaginário, assim como o discurso do melancólico é exatamente a análise do Real sem a presença do Imaginário.



John: Gaby, I'm sorry to disturb you, but we're ready to cut the cake.

Gaby: [behind the bathroom door] When Justine took her first crap on the potty, I wasn't there. When she had her first sexual intercourse, I wasn't there. So give me a break, please, with all your fucking rituals.

A personagem da mãe é a clássica histérica, aquela que passa o tempo todo negando a perda - a ultra-falicização do objeto perdido. É como se, no fundo, ela acreditasse muito no casamento, mas tem muito ódio do fato do falo não se encontrar ali. “O falo é desenhado no desejo da mãe”. E a Justine exerce parte da função filiatoria ao puxar essa função.

_Sobre Claire
As duas filhas são personagens muito bem construídas e fica claro que, na visão do Lars, as irmãs são especulares, ou seja, caminham no inverso uma da outra. A Claire é a sensata, aquela que sabe conduzir o espetáculo. Ela também é melancólica, mas consegue “se proteger” e sobreviver através dos rituais. O problema é que o espetáculo não banca/significa o real por causa da irmã melancólica. Claire equilibra os pratos enquanto Justine os desconstrói. E essa relação é reafirmada no final do filme, quando a Claire tenta desenhar uma encenação mesmo em frente a morte.

John, o marido da Claire, é a representação do sujeito moderno cientificista, covarde e [mais um] pai falido - um completo idiota, na visão do Lars. Ao longo da obrado diretor, a ciência é frequentemente representada como algo falido, incompleto e patético.

Remontando a estrutura familiar: o pai é ausente, a mãe é a falência e a irmã é a tentativa de sutura. Justine é o próprio desmascaramento desse desenho, uma vez que o melancólico muitas vezes tem esse papel de apontar as verdades.

O DIÁLOGO-TESE DO FILME//



Justine: The earth is evil. We don't need to grieve for it.
Claire: What?
Justine: Nobody will miss it.
Claire: But where would Leo grow?
Justine: All I know is, life on earth is evil.
Claire: Then maybe life somewhere else.
Justine: But there isn't.
Claire: How do you know?
Justine: Because I know things.

Em Melancolia, a tese de Lars Von Trier afirma que a natureza, a Terra e a natureza humana são más. A vida é má e, portanto, deve acabar. E os melancólicos já compreenderam isso. E ele joga com essa visão mostrando que a personagem tida como a mais “sensata” [Claire] é a que se comporta como uma criança frente aos acontecimentos. Esse papel do melancólico também tem uma relação direta com o universo particular do autor que, segundo entrevistas, afirma que fez esse filme para sair da depressão.

Há uma crítica severa do Lars à fé quase irracional na ciência e aos discursos criados pelo humano para dar significação ao Real. Metafísico ou não, trata-se de um discurso satânico. E, talvez, carregado de uma visão religiosa e totalitária.

Se a vida humana é má e isso é tudo que nos resta, a representação da cabana na última cena talvez seja nossa única alternativa [ou nosso último consolo] na visão do autor: a Cultura.








REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA DE APOIO ::  
_Luto e Melancolia, Sigmund Freud;
_Gregory Crewdson - fotógrafo americano de estética muito semelhante ao filme.


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23 de abril de 2012

Desejo e reconhecimento: de Hegel a Lacan

 

O fato de que o mundo humano esteja coberto de objetos se fundamenta em que o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do outro... Na origem ele [o sujeito] é uma coleção incoerente de desejos ... e a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego, está alienada[1].



Entre 1933 e 1939 o filósofo russo Alexandre Kojève ministrou um curso sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Lacan foi um dos seus alunos. Através de Kojève, Lacan encontrará na Fenomenogia conceitos como o desejo e o reconhecimento intersubjetivo, que fornecerão fundamentos para a sua idéia de uma ciência da personalidade, da análise das patologias mentais e de uma clínica psicanalítica. Tais conceitos estão no capítulo IV da Fenomenologia, intitulado “A verdade da certeza de si”.



Nós temos uma idéia bem clara do Absoluto por causa da nossa religião. Sendo cristãos, Deus é este Absoluto, ou o Espírito.

Hegel combatia a idéia teológica de que o Absoluto estaria fora, ou além do mundo espacial-temporal da História. Para ele este Absoluto, este Espírito se realiza no mundo. A Fenomenoliga do Espírito é uma narração de como este Absoluto se realizou, bem na sua época, depois do Espírito atravessar os séculos da História. A F.E. é, então, o relato desta travessia que, segundo Hegel, termina na sua época. Hegel é um iluminista que, portanto, crê no progresso e no percurso que trouxe o homem a um lugar onde ele encontra o seu Ser verdadeiro, o da liberdade, da autonomia e da ação.

Este homem é o cidadão e o seu lugar é o Estado. Conclusão talvez surpreendente quando se espera tratar do desejo. O desejo está numa etapa deste percurso. Aqui o abordaremos não pelo início (e não chegaremos ao final), mas a partir de um ponto do percurso onde Hegel diz que “já podemos sentir-nos em nossa casa e gritar, enfim, como o navegante depois de uma grande e aventurosa travessia por mares turbulentos: terra!”[2]. Trata-se de Descartes. Com ele começa, segundo Hegel, a cultura dos tempos modernos com a sua filosofia da interioridade.

O homem grego tem a sua existência empírica (real) determinada: ele é um ser que pertence a um lugar no Cosmos. Sua existência está, portanto, determinada (há um destino) e as eventuais variações são decorrentes do acaso.
Os gregos sabiam que o homem se diferencia dos animais: ele pensa e produz discursos coerentes. Mas este pensamento ainda era apenas parte do mundo das Idéias (como em Platão), o Logos. Então o homem era um animal que pertencia a um Cosmos ao mesmo tempo natural (a sua biologia), metafísico (o seu destino) e ontológico (era um ser pensante cujo pensamento participava do Logos).

Em Hegel o homem é consciência-de-si, ele é consciente da sua realidade, que é ser ao mesmo tempo sujeito e objeto. Como sujeito ele compreende os objetos da natureza. Mas ele também é objeto para si. Segundo Hegel, foi preciso que ele dissesse “Eu” para que houvesse condições da consciência-de-si emergir. O conhecimento do mundo se dá a partir deste principio geral do pensamento que parte de si mesmo. Já não estamos mais no mundo das Idéias de Platão, onde os conceitos eram externos à razão. Aqui, ao contrário, é a razão que os instaura. Daí a importância da formulação “Eu penso, eu existo”: minha existência se dá e ela é enquanto sou um ser que pensa. Este é o Ser do homem que se revela na época de Descartes: a sua consciência não é mais uma parte de um cosmos ou de um Ser Absoluto divino. O ser do homem é imanente (emerge dele mesmo) enquanto e apenas ele é um ser que pensa. Instaura-se então, no Ocidente, o que se chama a autonomia da razão. Autonomia em relação, por exemplo, às verdades reveladas pela religião, ao Destino, à determinações naturais tais como lugar, família, gênero ou pertencimento à uma ordem profissional. É a emergência do Eu. Estamos em 1641, quando Descartes publica as Meditações Metafísicas.

Em Descartes é este ser pensante que instaura os conceitos e terá que pensar os objetos do mundo que o rodeia. É como se o homem fosse este logos[3] que contempla as coisas do mundo e instaura a verdade sobre elas através da palavra. Mas, segundo Kojève, Descartes não teria respondido à pergunta: “É certo, sou um ser que pensa. Minha mente é uma substância pensante radicalmente diferente das substâncias materiais. Mas o que é este ser que pensa?”. Ainda não temos um Eu que interroga a si mesmo. Para Descartes este Eu apartado radicalmente do mundo espacial-temporal na forma da substância[4] pensante é como um logos que existe. Que talvez seja parte d’O Logos (Deus), mas que é fundamentalmente algo fixo e substancial[5]. De todo modo, Hegel diz que em Descartes “a filosofia se converte, assim, em uma incumbência geral acerca da qual todo homem sabe emitir juízo, pois todo indivíduo é um ser pensante por natureza”. Nela, “a consciência de si é um momento essencial da verdade”[6].

É como se Hegel tivesse definido a tarefa do homem de ser aquele que não apenas fala da Natureza e de si como ser natural (positivo), mas que é consciência que pensa a si.

Nesta percurso das figuras da consciência através da história, Hegel diz que “com a consciência-de-si entramos, pois, na terra pátria da verdade. Vejamos como surge inicialmente a figura da consciência-de-si se considerarmos essa nova figura do saber – o saber de si mesmo – em relação com a precedente – o saber de um Outro… Assim, o que parece perdido é apenas o subsistir simples e independente para a consciência … é apenas a tautologia do ‘Eu sou Eu’.”[7]. Ou seja, a consciência enquanto o que observa o mundo não traz a verdade sobre si: a consciência que procura se conhecer como conhece os outros objetos do mundo está fadada a tautologia do “Eu sou Eu”, pois todos os objetos do mundo são externos à consciência, mas ela possui consigo uma relação de interioridade. Assim, o ato de conhecer o objeto consiência só será bem sucedido, segundo Hegel, quando a diferença for suprimida: o ser-outro não é.

Para a consciência-de-si, portanto, o ser-Outro é como um ser … mas para ela é também a unidade de si mesma com esta diferença … Essa unidade deve vir-a-ser essencial para ela, o que significa: a consiência-de-si é [apenas simplesmente] desejo, em geral[8].

Agora a consciência-de-si tem diante de si um outro ser, um outro homem, que também é consciência de si. Este outro homem lhe aparece de dois modos: um enquanto objeto do mundo (fenômeno), outro enquanto outra consciência-de-si. Na busca pela sua verdade, a consciência-de-si se depara com est problema: a sua verdade está fora dela: se ela quiser abandonar a unidade tranquila dela com ela mesma do “Eu sou Eu”, ela descobrirá, segundo Hegel, que terá que buscar a sua essência numa outra consciência-de-si. Ou seja, a sua essência é marcada para ela “com o sinal do negativo”, ou pela falta.

Voltando a Descartes, é como se a consciência cartesiana, cujo pensamento autônomo presidia a compreensão dos objetos do mundo, percebesse que nem todos os objetos do mundo podem ser postos a partir dela. Aqui é diferente: quando a consciência tenta responder à pergunta “o que sou este ser que pensa?”, ela se dá conta, segundo Hegel, que deverá agir outro modo. Este agir diferente é o que possibilita a passagem da consciência para a consciência-de-si. Ou seja “A consciência-de-si que pura e simplesmente é para si, e que marca imediatamente seu objeto com o caráter do negativo, ou que é, de início, desejo – vai fazer pois a experiência da independência deste objeto”[9].

Hegel afirma que o agir da consciência pelo desejo é um ato ou tentativa de reconhecimento. Existiria, então, esta marca do ser humano,  o reconheci-mento:

A consciência-de-si existe em si e para si quando e por que existe … para uma Outra [consciência-de-si]; quer dizer, só é como algo reconhecido[10].

Consideremos agora este puro conceito do reconhecimento, [isto é] a duplicação da consciência-de-si em sua unidade, tal como seu processo se manifesta para ela. Este processo [esta evolução] vai apresentar primeiro o lado da desigualdade de ambas [as consicências-de-si] ou o extravasar do meio-termo nos extremos, os quais, como extremos, são opostos um ao outro; um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece[11].


Ou seja, não ocorre o “meio-termo” (que seria o reconhecimento mútuo): cada uma tentará transformar o outro num objeto exterior a si (como o são todos os objetos naturais no mundo). Este é o primeiro resultado da ação motivada pelo desejo: a consciência-de-si percebe que o seu Ser está no outro. Então ela tenta se “apropriar” deste seu ser que está no outro. Irá tratar o outro como um seu objeto. Então, inicialmente, as duas consciências-de-si não conseguirão fazer a abstração do outro como um indivíduo humano livre e independente: “a apresentação de si como pura abstração da consciência-de-si consiste em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva[12]”, ou seja, mostrar que ser humano é não estar ligado a nenhuma existência determinada (lugar, país, grupo social, casta, genero etc), ou, à vida, às condições naturais, em geral. É toda uma idéia da natureza humana como algo fixo que é posta em questão. E Hegel prossegue:

Esta apresentação é o agir duplicado: o agir do Outro e o agir por meio de si mesmo. Enquanto agir do Outro, cada um tende, pois, à morte do Outro. Mas aí também está presente o segundo agir, o agir por meio de si mesmo, pois aquele agir do Outro inclui o arriscar a vida. Portanto, a relação das duas consciências- de-si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou morte [13].
Eles devem arrisar a vida para elevar à verdade o conceito puro do reconhecimento. Para Hegel, um homem que não arriscou a vida, que não negou a sua existência natural, não é reconhecido como consciência-de-si autônoma. Este ser humano teria a sua existência restrita, por exemplo, a um fato natural de ter nascido mulher, que pertence a uma determinada família, cuja essência é prolongar a existência desta família, gerando filhos que, por sua vez, levariam o nome adiante.

Para Hegel, a verdade do ser humano é este desarraigamento, esta evanescência, ser humano como desejo e falta. Daí uma certa incompletude que só se realiza no futuro, que parece estar sempre “no projeto”. O outro não me completa, mas, ao mesmo tempo, a minha essência está fora de mim. E isto é angústia.

Daí a luta. Ambos lutam e arriscam a vida. Não por um objeto natural: animais também arriscam a vida por comida, refúgio ou para proteger os filhos. Só o homem o faz por um objeto abstrato: o reconhecimento. É claro, neste arriscar a vida não existe a morte biológica: se, na luta, um matasse o outro, o que mata não poderia gozar do reconhecimento do vencido morto. Logo, ambos sobrevivem da seguinte forma: um decidiu aceitar a derrota e preservar a sua vida e se torna o que Hegel chama de escravo. O vencedor será o senhor.

Este vencedor aparentemente atingiu o seu intento e a ação do seu desejo foi bem sucedida; ele irá poder fruir do reconhecimento do vencido. Então a consciência do senhor abandonou a posição “Eu sou Eu” e entrou em relação com uma outra consciência. Nas palavras de Hegel, o senhor “já não é apenas o conceito desta consciência, mas uma consciência que é para si mediatizada consigo por meio de uma outra consciência”[14].

Qual é a situação do escravo? Ele é aquele que escolheu, na luta pela vida ou morte, preservar a própria vida, ou seja, ele escolheu preservar a sua vida biológica abandonando o embate. Então ele é, nesta etapa, uma consciência que se identifica apenas com a sua vida animal. Segundo Hegel “ao recusar-se a arriscar a vida numa luta de puro prestígio, ele não se eleva acima do animal. Considera-se como tal e como tal é considerado pelo senhor”[15]. E, ao mesmo tempo, o escravo reconhece o senhor na sua realidade e dignidade humana.

O senhor frui dos objetos do seu desejo através do escravo. O escravo produz tais objetos. O senhor satisfaz o seu desejo através do escravo, que decidiu permanecer ligado à vida, às coisas naturais. Mas o escravo também é consciência-de-si e é ele que transforma as coisas naturais para oferece-las ao senhor. Em outras palavras, o escravo trabalha[16] [17]. Ele faz uma mediação entre as coisas e o senhor. Hegel prossegue: “através desta mediação [com a coisa feita pelo escravo], a relação imediata vem-a-ser [advém] com a pura negação da coisa [a transformação da coisa pelo escravo], ou como gozo – o qual lhe consegue o que o desejo não conseguia: acabar [no ato de consumir] com a coisa, e aquietar-se no gozo”[18].

Mas poderiamos perguntar: mas o senhor não pode se relacionar diretamente com os objetos do seu desejo, sem a intermediação do escravo? Segundo Hegel, isto seria uma relação de fruição ligada à vida animal. Certamente nos relacionamos neste nível com certos objetos quando sentimos fome, sede, ou quando aniquilamos um outro ser. Mas, aqui, o que a consciência-de-si descobre é que o que é verdadeiramente humano demanda a fruição dos objetos do desejo humano através de um outro, através de uma outra consciência-de-si. Daí o desejo por objetos em si absolutamente prosaicos como uma medalha olímpica, um troféu, ou fincar a bandeira de um país numa terra estrangeira.

Até aqui, então, estamos diante de uma relação de reconhecimento incompleta e assimétrica.

Voltando ao texto, em que situação existencial se encontram o senhor e o escravo? O senhor percebe que recebeu o reconhecimento do escravo. Mas este, ao se a aferrar à vida, à sua condição natural, não é ainda uma consciência-de-si reconhecida; não é um ser na sua dimensão e dignidade humanas. Ou seja, o senhor está buscando reconhecimento numa outra consciência-de-si que não é. Ela é apenas objeto da fruição do senhor. E o senhor então cai num impasse: venceu a luta pelo reconhecimento e o recebe do escravo, mas este não é uma consciência-de-si, ou seja, o reconhecimento vem de um objeto! O senhor  ficaré preso a esta situação existencial. Ele não pode sair dela pois decidiu arriscar a vida, venceu e está cristalizado na condição de senhor do escravo. Ele poderia lutar contra um outro senhor, mas este, se não morrer se tornará um outro escravo! Nas palavras de Lacan:

A quem [o senhor] deve a sua humanidade? Apenas ao reconhecimento do escravo. Porém como ele não reconhece o escravo [como ser humano], este reconhecimento não tem literalmente valor algum. Como costuma ocorrer habitualmente na evolução concreta das coisas, quem triunfou e conquistou o gozo se torna completamente idiota, incapaz de fazer outra coisas além de gozar, enquanto aquele a quem se privou de tudo conserva a sua humanidade[19].

Segundo Hegel, será o escravo que irá romper este impasse, ou seja caberá a ele resolver o impasse existencial em que se encontram.

Como vimos, o escravo é, ao mesmo tempo: a) aquele que tem idéia da morte, da sua finitude, ou seja, do homem como ser finito (pois é também um ser natural-biológico) e b) aquele que é ser que trabalha, ou seja, que transcende pelo trabalho o seu dado natural ao tranformar o que é natural (o objeto trabalhado) em algo para outro. O trabalho é planejamento, técnica, ciência, mas também é algo que o escravo realiza com fins não naturais. Pode-se dizer, com fins antropológicos, pois ele o realiza em função de uma idéia (de outro) que é o desejo (do outro). O trabalho é projeto e ação com vistas a fins não-naturais. Um castor também trabalha a madeira para construir um dique, mas ele não constrói diques para realizar o desejo de um outro ser. Só o homem o faz.

Ou seja, é o escravo aquele que primeiro compreende a verdadeira dimensão do Espírito enquanto uma realização de um ser que é natural-biológico, mas também como Eu ou homem, ou uma razão que age visando um fim que não é puramente natural.



[1] Lacan, Seminário 3 (O outro e a psicose).
[2] Hegel, Lições sobre a história da filosofia, vol. III: O Período do entendimento pensante.
[3] Pode-se entender logos como uma frase ou um discurso estruturado e compreensível por outros.
[4] Substância, ou essência é algo que só existe objetivamente quando ligada ao seu suporte natural. Logo, são necessários homens reais-biológicos existindo num lugar e no tempo para “encarnar” o Logos. Logo, o pensamento só existe quando e enquanto existem homens reais-biológicos. Mas dividimos a mesma biologia com os animais. O que nos diferencia deles é que só somos Homem quando e na medida em que pensamos. Daí a importância da co-temporalidade do “eu penso” com o “eu existo”.
[5] A alma ou mente é uma substância pensante. Portanto, Descartes não teria abandonado a idéia pagã do homem como uma identidade substancial. Para Hegel, o homem é aquele da tradição judaico-cristã, que transmitiu para Hegel as idéias de um indivíduo (a Salvação é individual) diferenciado da natureza, não apenas porque pensamos, mas porque sua natureza é pecado (o homem nasce no pecado) e ele se opõe a ela através da ação que poderá levá-lo à salvação. Para Hegel, o homem é liberdade e ação.
[6] Hegel, idem.
Momento, aqui, pode ser entendido como uma parte de uma totalidade. Na lógica de Hegel, o todo e as suas partes são essencialmente relacionados entre si e não são mutuamente independentes. Deste modo, todas as etapas ou figuras que a consciência assumiu ao longo da História se conservam e constituem o todo do Absoluto.
Verdade é, em geral, a adequação do conceito ao objeto ou, uma realidade que se revela. Para Hegel, só o Absoluto é estritamente verdadeiro, mas ele usa o termo verdade também para designar um estágio de um processo com relação ao seu predecessor. Assim, a percepção é a verdade da certeza sensível, na medida em que resolve as contradições desta, mesmo que a percepção venha a ter, ela mesma, as suas próprias contradições.
[7] Hegel, Fenomenologia do espírito. Vozes, 2a ed, p 136.
[8] Idem.
[9] Idem, p. 137.
[10] Idem, p. 142.
[11] P. 144.
[12] P. 145.
[13] P. 145.
[14] P. 147.
[15] Kojève, op. cit. p. 21.
[16] Trabalho é atividade. Para Hegel o conceito de ação é fundamental, como vimos. O Ser que não age permanece eternamente igual a si mesmo, na tranquilidade do “Eu = Eu”, ou no repouso do seu suporte natural. Para Hegel, o entendimento é uma ação que separa o Ser do seu dado espacio-temporal. No trabalho o homem nega o ser do objeto trabalhado, transformando-o em algo outro. E a transformação não se dá apenas no sentido material. Esta é a menos importante, a verdadeira transformação se dá porque o escravo transforma o objeto PARA o senhor, ou seja, o objeto a ser trabalhado terá um duplo destino: primeiro, tornar-se um objeto-outro, segundo, tornar-se um objeto para um outro.
[17] Grosso modo, aqui está a origem da sociologia que trata das relações humanas através do trabalho, como em Marx. Para Hegel, esta etapa da consciência-de-si que põe o conceito que desagua na relação senhor-escravo é o que se verificou na história com o advento da classe burguesa na revolução industrial. Assim, no advento do burguês capitalista estaria uma figura do senhor (há outras), e no proletário a figura do escravo.
[18] Hegel, op. cit., p. 148.
[19] Lacan, op. cit.