“Bons
cineastas situam-se confortavelmente nos gêneros que adotam. Os grandes,
apenas, os redefinem. David Cronemberg o fez com o terror, com o filme
fantástico”.
Inácio
Araujo
Grandes
cineastas como John Ford, Martin Scorcese, Alfred Hitchcock, Howard Hawks e
Francis Coppola (entre tantos outros) tinham e têm em comum, maneiras
específicas de filmar, temas recorrentes, obsessões, visões de mundo; todos
esses aspectos em conjunto ou um, dois em particular, estão presentes nas obras
desses diretores.
Por essa
razão, seus filmes são, quase sempre, avaliados pelo conjunto, pela temática,
pela maneira de filmar, mesmo quando produziram obras ‘menores’ (Tucker, de
Coppola ou Marnie de Hitchcock, por exemplo).
Isso tende a
explicar por que filmes considerados ‘menores’ no lançamento são, muitas vezes,
reavaliados após um certo período de tempo. É o caso de Duel de Spielberg um
telefilme pouco valorizado à época e hoje considerado fundamental para entender
as obras seguintes do diretor, entre elas Jaws – Tubarão; é o caso, ainda, de
Dahlia Negra de Brian De Palma, uma pequena e recente obra prima do diretor de
Vestida Para Matar.
David
Cronemberg está, certamente, nesse time dos grandes diretores. Seus filmes
devem ser analisados à luz de sua
obra, seus temas recorrentes como a transformação dos corpos, a humanidade e
suas fronteiras, o delírio as frequentes dualidades presentes em seus filmes:
imaginação-realidade, corpo-mente, real-irreal, além dos temas próprios do diretor
como deslocamento especial ou temporal de personagens, inversão de sentidos ou
significados e uma das marcas exteriores mais frequentemente associadas a
Cronemberg, a forma bizarra e original
de mostrar cenas violentas (entre o repugnante em Fly e Dead Ringers e o
explícito em Crash, A History of Violence e Eastern Promisses).
,
Em seus
filmes de maior visibilidade (Fly, 86; Dead Ringers, 88; Crash, 96, Existenz e
os mais antigos e autorais Videodrome e Scanners), Cronemberg trabalha, de
maneira mais ou menos marcante, temas que abordam o trans-humano, o delirio, o universo kafkiano.
A frase que
acompanha The Fly é bastante ilustrativa: Once it was human even as you and I.
Em nenhum
desses filmes – aí incluido A History of Violence, Cronemberg trabalha apenas
com a idéia de entrelaçamento de dualidades. Em Existenz, por exemplo, há
conflitos importantes entre o ‘real’ e o imaginário e internamente em cada uma
dessas instâncias; em The Fly, a transformação é um processo de conflitos tanto
no lado animal (a força, a energia) quanto do lado humano que se perde (o amor,
os amigos).
A History
of Violence não é uma simples filmagem de dicotomias ou dualidades que culmina
na saga de um justiceiro. O início do filme, que traz embutida a idéia de - é
tão perfeito que não pode ser real, denuncia o que serão essas dicotomias
ou dualidades. Com um cenário próximo de pinturas hiper realistas (a citação
parece muito próxima de Edward Hopper com suas varandas e cadeiras
estrategicamente espalhadas), a primeira cena indica uma típica cena ‘road
movie’ americano, mas, ao mesmo tempo, nem tão típica assim, nem tão americana
assim.
O cenário
parece próximo do que conhecemos dos road movies, mas o carro em frente ao
Motel-Bar sugere que estamos num universo algo diferente: o carro é novo, está
limpo, os bancos são brancos reluzentes – ao invés do típico vermelho, ao invés
do carro velho e sujo.
A ‘limpeza’
aparente contrasta com o cenário sujo e, veremos na parte de dentro do
Motel-Bar, os mortos e seus corpos sujos. O tiro na menina encerra de maneira
violenta a cena de abertura, mostrando que os dois personagens que estavam à
frente do Motel-Bar não pertencem ao lado magnânimo da história.
Toda a
primeira parte do filme será ‘permeada’ pelo clima dessa primeira cena. A
família dos Stall (Tom incluído) parece sugerir que estamos diante de uma
típica família americana. De que época, no entanto? Do imaginário da década de
50? Assim como o carro na primeira cena indicava algo deslocado, ‘fake’, na
família Stall há algo estranho. Todos fazem as refeições juntos, todos se
respeitam, não há conflitos aparentes.
Cronemberg
produz, então, um tour de force. Ele aparenta inverter o personagem de Tom, com
um episódico ato de violência (bandidos entram em seu bar a procura de um sujeito
chamado Joey). Não há inversão, no entanto. Aqui, a contradição pertence a uma
das dualidades (a boa, a da integração, a da paz familiar e comunitária). Tom
reage, não como Joey…mas como o sujeito integrado na comunidade (Tom, torna-se,
então, o herói americano, mas não por seu pertencimento do mundo dos bandidos,
enquanto Joey….mas por exercer seu poder de ser violento enquanto cidadão
‘normal’).
Nada menos
dicotômico, nada mais surpreendente.
Muito embora, a violência explícita esteja espalhada pelo filme (na cena
inicial, no bar, no confronto final com os bandidos), é na caracterização da
própria comunidade e da família (onde impera a paz) que vamos encontrar a
violência.
Tom não é
movido por vingança (não a típica vingança dos justiceiros americanos que foram
presos, que tiveram a família morta, que foram presos injustamente). Tom é
movido pela idéia de restaurar a paz (dentro de seu mundo, que não existe). Tom
NÃO é um justiceiro.
Em Fly, o
once it was human even as you and I, é marcado pela transformação externa
(do humano para o animal); em Videodrome, novamente, a transformação ocorre por
uma incorporação de objetos ao corpo, transformando-o num terceiro. Em A
History of Violence, seguindo (e rompendo) a tradição Cronemberguiana da transformação,
nada é aparente. A transformação aqui parece mais conformista. Saímos de um
cenário ‘falso-estranho’ para um mundo real de sentimentos, emoções e
violências onde os personagens perdem em arrogância e ganham em humanidade.
Leia-se ESPACIAL e não especial no quinto parágrafo..quinta linha
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