10 de outubro de 2011

A Vila dos Cachorros

Há muitas maneiras de discutir Dogville de Lars Von Triers. Vou me concentrar em apenas um deles: a presença do cachorro Moisés como guardião da pequena cidade do Colorado.Frequentemente associamos o cachorro a um animal de família, muito próximo e fiel ao homem. Há certos tipos de cachorro que parecem mimetizar o (bom) humano (ou, ao menos, é assim que enxergamos). Por isso, é muito comum que associemos o cachorro a um lado bom, gentil, amoroso, companheiro.Em recente artigo, publicado na Ilustríssima de 9 de outubro de 2011 - http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il0910201107.htm - Umberto Eco analisa um caso publicado no Corriere dell Sera onde um cão teria elaborado um plano complexo (correr até uma ambulância e chamar os paramédicos) para salvar sua dona. Eco recorre à história e a Sexto (que fala do quinto indemonstrável, um possível raciocínio dos cães que lhes tornaria capazes de tomar decisões diante de certas circunstâncias) e a Plutarco que também fala da astúcia dos animais e do cachorro em particular para discutir a idéia da inteligência canina.
O artigo de Eco reforça a idéia do cachorro como um animal inteligente, próximo do homem, capaz de tomar decisões complexas.
Podemos citar, ainda, o filme de Werner Herzog (O Urso) para falar da ambiguidade presente (na natureza ou na natureza humana). O filme fala de uma história real sobre um pesquisador que 'vive' com os ursos e acaba sendo comido por eles (juntamente com sua esposa) num ataque de fúria por parte de um urso 'próximo' (Herzog aceita o projeto pelo fato do episódio ter sido filmado involuntariamente pelo pesquisador, que foi atacado justamente quando registrava uma atividade dos ursos).
O filme de Triers mostra ambiguidade - entre a rotina calma, bondosa e a maldade - nos personagens de Dogville (incluindo Grace e Tom, os mais 'neutros') e, particularmente em Moisés. Para equilibrar a idéia de bondade, de gentileza, de amor, há, em muitas representações históricas (na pintura, na escultura, nos mitos), a figura do cachorro como um feroz guardião, violento, sanguinário, muito distante da capacidade de mimetizar o homem bondoso (como demonstram as ilustrações do início do texto).Obras de escritores famosos fazem alusão a Cérbero um cão de três cabeças (em alguns casos, ele é visto com sete ou nove cabeças), um cão de guarda cuja única função é atacar.Comentando a obra Divina Comédia, João Adolfo Hansen diz que "O Cão Cérbero os rasga com as garras e ladra contra eles com três faces, lembrando-lhes continuamente o seu pecado". Cabe lembrar, aqui, que Cérbero é responsável por atacar todos os que tentam sair do Inferno.Cérbero só recua frente a Hércules que lhe 'passa uma coleira de ferro no pescoço do animal'. Naquilo que nos interessa, a violência de Cérbero está sempre em evidência: "Num abrir e fechar de olhos, pulou até o trono de Plutão. Três bocarras abertas se fecharam nele. Não fosse a proteção da pele do leão de Neméia, teria sido dilacerado."
O efeito 'morph' que Von Triers aplica em Moisés, mostra toda sua ambiguidade: a Lei de Moisés, ou Lei de talião se estabelece com o imenso rugido de Cérbero. Olho por olho, dente por dente.

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