17 de maio de 2012


Lust, Caution... Lacan!


No post sobre Hegel de 23/abril neste Blog falei que a consciência-de-si surge quando o sujeito deixa de se ver separado do mundo e se compreende como ação. Ação negadora e formadora. O sujeito encontra o seu sentido  enquanto age no mundo.  É uma antropologia diferente daquela do homem grego, que primeiro se conhece para depois agir. A ação em Hegel é formadora: lutar e arriscar a vida (biológica) pelo “prestígio” – um bem ou valor socialmente aceito e reconhecido. Animais arriscam a vida por alimento ou pela prole, mas nunca por um bem não natural como a liberdade.

Qdo a jovem Mak Tai Tai, a personagem de Desejo e Perigo (Lust, Caution. Ang Lee, 2007) vai ao encontro do policial Yee, seu inimigo mas futuro amante, ela está decidida a arriscar a sua vida (biológica) por “prestígio”, pelo ideal de liberdade.

No encontro do nosso grupo em 8/maio concordamos que Mak termina por se envolver afetivamente com o seu inimigo.  Há um gozo? É duplo, ou melhor, triplo?  Há desejo (Begierde) carnal (sua primeira relação sexual com Yee foi praticamente um estupro), o prazer (Lust em alemão, lust em inglês) – no sentido de amor (concordamos que ela fica amorosa de Yee) e a luta (Kampf) reconhecimento dos companheiros da sua célula combatente.

Nosso colega Marcos do grupo de cine e psicanálise achou que o romance entre ambos pouco crível. A paixão dos dois é improvável? Ele, um policial, nunca investigaria a vida de sua amante? Ela poderia circular livremente entre os dois lados da guerra? Decerto o filme usou fórmulas: dormindo com o inimigo, amor impossível, a mulher cuja lei do coração se choca com a lei da Cidade (Antígona) e tem um destino trágico; belas e fortes cenas de sexo, cenários requintados para cidades na paupérrima China de 1942. De todo modo um filme com elementos requintados.

Aprendemos neste encontro do grupo que Mak Tai Tai – estudante e atriz muito jovem – está em busca de reconhecimento. eEntra na luta durante a delicadíssima situação da guerra e da resistência, e parece que encontra o reconhecimento justamente no seu inimigo: decide abandonar a luta da Resistência quando poupa a vida de Yee.  Entre a luta e o prazer,  ela opta pelo gozo do prazer

Mak arrisca a sua vida novamente quando poupa a vida de Yee, mas desta vez não mais por “prestígio”, não mais por valor sociamente reconhecido. Ela o faz por um gozo que a irá perder: “Lança-se, pois, à vida e leva à plena realização a individualidade pura ... mais do que produzir para si a sua felicidade, imediatamente a colhe e desfruta. As sobras das ciências, das leis e dos princípios que se interpõe entre ela e a sua própria efetividade , desvanecem ... Ela então toma a vida como se colhe um fruto maduro...”. Não é como uma outra consciência-de-si que Mak deseja Yee, e isto será a sua perdição. “O prazer desfrutado possui ... [a significação] negativa de ter suprimido a si mesmo [1].

Mak deseja poder encontrar a sua essência neste tipo de relação, mas encontra apenas  a si transformada um objeto-natural. Esta atividade do seu desejo consegue o que se esperava: eles retornam ao dado-natural que são os seus corpos amantes. Não há um projeto de reconhecimento a dois que possa ser visado. Apenas dois corpos amantes, Yee não se põe no projeto amoroso. Recua. A troca amorosa não é.

Ao poupar a vida de Yee, Mak decidiu abandonar a lei do seu grupo social e se entregar ao que Hegel chama de necessidade: “É o que se chama necessidade;  com efeito, necessidade, destino etc; que são justamente uma coisa que ninguém sabe dizer o que faz, quais suas leis determinadas e seu conteúdo positivo”.[2] Este parece ser um dado do roteiro do filme: ela decide se entregar ao seu inimigo. Pode parecer pouco crível, como um filtro mágico ou a mão do destino. Difícil saber.  Talvez, então, estamos no registro do desejo como “turvação” (Sartre).

 Ou o desejo como “opacidade” (Lacan): todo sujeito é produto de uma cisão da “unidade libidinal” original do bebê com o corpo da mãe. Grosso modo, a repressão a este ser erótico e a consequente introjeição das normas sociais cria esta cisão (consciente-inconsciente) mas é justamente este processo de sociabilização que nos torna um sujeito, socialmente falando. Doloroso. O sujeito se constitui neste processo de afastamento, rebaixamento e negação da pulsão. O desejo constitui para Lacan um movimento no sentido de retornar a este mundo pulsional original que foi encastelado no inconsciente pelos sucessivos processos de repressão/sociabilização  a que somos submetidos na infância. Logo, a satisfação plena do desejo implicaria na dissolução do próprio sujeito que então retornaria, no limite, à unidade amorfa e libidinal.

A opacidade é justamente a impossibilidade do sujeito fazer uma unidade do que vive conscientemente com o material do seu inconsciente. Logo, Lacan entende que a dialética de Hegel não pode operar aqui: não há síntese possível que o sujeito possa operar se são estruturas diferentes. Ou seja, a consciência-de-si hegeliana trata apenas do consciente e o inconsciente não é considerado. Pior para Hegel, melhor para o nosso filme: agora entendemos o desejo que move a união improvável de Mak Tai Tai e Yee: está coberto por um véu de “opacidade”.


[1] Hegel, Fenomenologia do Espírito, cap. V.
[2] Idem.

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