Lust, Caution... Lacan!
No post sobre Hegel de 23/abril
neste Blog falei que a consciência-de-si surge quando o sujeito deixa de se ver separado do
mundo e se compreende como ação. Ação negadora e formadora. O sujeito encontra o seu sentido enquanto age no
mundo. É uma antropologia diferente
daquela do homem grego, que primeiro se conhece para depois agir. A ação em
Hegel é formadora: lutar e arriscar a vida (biológica) pelo “prestígio” – um
bem ou valor socialmente aceito e reconhecido. Animais arriscam a vida por
alimento ou pela prole, mas nunca por um bem não natural como a liberdade.
Qdo a jovem Mak Tai Tai, a
personagem de Desejo e Perigo (Lust,
Caution. Ang Lee, 2007) vai ao encontro do policial Yee, seu inimigo mas
futuro amante, ela está decidida a arriscar a sua vida (biológica) por
“prestígio”, pelo ideal de liberdade.
No encontro do nosso grupo em
8/maio concordamos que Mak termina por se envolver afetivamente com o seu
inimigo. Há um gozo? É duplo, ou
melhor, triplo? Há desejo (Begierde) carnal (sua primeira relação
sexual com Yee foi praticamente um estupro), o prazer (Lust em alemão, lust em inglês) – no sentido de amor
(concordamos que ela fica amorosa de Yee) e a luta (Kampf) reconhecimento dos companheiros da sua célula combatente.
Nosso colega Marcos do grupo de cine e psicanálise achou que o romance entre ambos pouco crível. A paixão dos dois é improvável? Ele, um policial, nunca investigaria a vida de
sua amante? Ela poderia circular livremente entre os dois lados da guerra?
Decerto o filme usou fórmulas: dormindo com
o inimigo, amor impossível, a
mulher cuja lei do coração se choca
com a lei da Cidade (Antígona) e tem um destino trágico; belas e fortes cenas de sexo,
cenários requintados para cidades na paupérrima China de 1942. De todo modo um
filme com elementos requintados.
Aprendemos neste encontro do
grupo que Mak Tai Tai – estudante e atriz muito jovem – está em busca de
reconhecimento. eEntra na luta durante a delicadíssima situação da guerra e da
resistência, e parece que encontra o reconhecimento justamente no seu inimigo:
decide abandonar a luta da Resistência quando poupa a vida de Yee. Entre a luta e o prazer, ela opta pelo gozo do prazer
Mak arrisca a sua vida novamente
quando poupa a vida de Yee, mas desta vez não mais por “prestígio”, não mais por
valor sociamente reconhecido. Ela o faz por um gozo que a irá perder:
“Lança-se, pois, à vida e leva à plena realização a individualidade pura ...
mais do que produzir para si a sua felicidade, imediatamente a colhe e
desfruta. As sobras das ciências, das leis e dos princípios que se interpõe
entre ela e a sua própria efetividade , desvanecem ... Ela então toma a vida
como se colhe um fruto maduro...”. Não é como uma outra consciência-de-si que
Mak deseja Yee, e isto será a sua perdição. “O prazer desfrutado possui ... [a
significação] negativa de ter suprimido a si
mesmo” [1].
Mak deseja poder encontrar a sua
essência neste tipo de relação, mas encontra apenas a si transformada um objeto-natural. Esta atividade do seu
desejo consegue o que se esperava: eles retornam ao dado-natural que são os
seus corpos amantes. Não há um projeto de reconhecimento a dois que possa ser
visado. Apenas dois corpos amantes, Yee não se põe no projeto amoroso. Recua. A
troca amorosa não é.
Ao poupar a vida de Yee, Mak
decidiu abandonar a lei do seu grupo social e se entregar ao que Hegel chama de
necessidade: “É o que se chama necessidade; com efeito, necessidade, destino
etc; que são justamente uma coisa que ninguém sabe dizer o que faz, quais suas
leis determinadas e seu conteúdo positivo”.[2]
Este parece ser um dado do roteiro do filme: ela decide se entregar ao seu
inimigo. Pode parecer pouco crível, como um filtro mágico ou a mão do destino. Difícil
saber. Talvez, então, estamos no
registro do desejo como “turvação” (Sartre).
Ou o desejo como “opacidade” (Lacan): todo sujeito é produto
de uma cisão da “unidade libidinal” original do bebê com o corpo da mãe. Grosso
modo, a repressão a este ser erótico e a consequente introjeição das normas
sociais cria esta cisão (consciente-inconsciente) mas é justamente este
processo de sociabilização que nos torna um sujeito, socialmente falando.
Doloroso. O sujeito se constitui neste processo de afastamento, rebaixamento e
negação da pulsão. O desejo constitui para Lacan um movimento no sentido de
retornar a este mundo pulsional original que foi encastelado no inconsciente
pelos sucessivos processos de repressão/sociabilização a que somos submetidos na infância.
Logo, a satisfação plena do desejo implicaria na dissolução do próprio sujeito
que então retornaria, no limite, à unidade amorfa e libidinal.
A opacidade é justamente a
impossibilidade do sujeito fazer uma unidade do que vive conscientemente com o
material do seu inconsciente. Logo, Lacan entende que a dialética de Hegel não
pode operar aqui: não há síntese possível que o sujeito possa operar se são
estruturas diferentes. Ou seja, a consciência-de-si hegeliana trata apenas do
consciente e o inconsciente não é considerado. Pior para Hegel, melhor para o
nosso filme: agora entendemos o desejo que move a união improvável de Mak Tai
Tai e Yee: está coberto por um véu de “opacidade”.
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