19 de maio de 2012

Algo do desencanto e o possível desvelamento da ilusão em “Madame Bovary” e "As duas faces da felicidade" de Agnès Varda



Emma Bovary
 
         Emma, filha de fazendeiro, educada em convento, leva uma pacata vida ao lado de seu pai e casa-se com Charles Bovary, médico de província. Impregnada pelas leituras românticas que devora e alimentando uma visão apaixonada e lírica da existência, ela sonha com um casamento que combina com suas fantasias da juventude. Mas a vida de casada degenera rapidamente e se torna insípida e monótona. Charles, homem sem ambição, não corresponde às suas aspirações de ter uma vida estimulante.
         A ida ao baile dado no Chateau de la Vaubyessard marca uma etapa determinante na historia de Emma porque a faz vislumbrar os charmes tentadores da vida privilegiada que ela só conhecia nas páginas dos livros. Essa noite ressoará por muito tempo em seu espírito e, para se aproximar mais da imagem e da vida que idealizou para si, Emma começa a gastar o que tem e o que não tem em roupas e em aventuras com seus amantes. Suas aventuras amorosas são para ela uma fuga do casamento insatisfatório e da realidade que ela não sonhou para si.  Seus devaneios a levam à ruína quando ela acaba se vendo endividada e comprometendo os bens da família. Sem ter a quem recorrer - todos os seus amantes a abandonam - ela, em um último ato de desespero, ingere arsênico e prova de uma morte lenta e agonizante.
         “Madame Bovary”, romance mais conhecido de Gustave Flaubert, começou a ser publicado em 1856 em forma de folhetim na Revue de Paris e logo conheceu o sucesso. Parte dele graças ao grande escândalo causado por um processo público. O romance foi processado pelo realismo vulgar e chocante dos seus personagens, mas foi absolvido. Balzac havia sido processado pelo mesmo motivo com seu romance “A mulher de 30 anos” que faz parte da sua obra “ A comédia humana” e foi em sua homenagem que Flaubert colocou o subtítulo de “os modos do campo” em Madame Bovary.
         Ao retratar os costumes de uma determinada classe social de seu tempo, Flaubert tinha como intenção falar sobre o que ele chamava de “existência sem brilho, pálida e triste das pessoas comuns”. Falar sobre esse universo e, acima de tudo, retransmitir as sensações presentes nele é o verdadeiro interesse do autor. Mas o que ele consegue ao escrever o romance é mais do que falar sobre o mundo da pequena burguesia rural francesa do séc. XIX. Ele toca algo mais vasto que perpassa as classes sociais e que ele transforma em matéria central do enredo: o reino da mediocridade, o universo cinza do homem sem qualidades. E é por isso que o livro de Flaubert pôde ser considerado como o fundador do romance moderno. Porque ele foi todo construído ao redor da esquálida silhueta do anti-herói.  
         "Não são as grandes tragédias que compõem a Infelicidade, nem os grandes acontecimentos que fazem a Felicidade, mas é o tecido fino e imperceptível de mil circunstâncias banais, de mil pequenos detalhes que compõem toda uma vida de tranquilidade radiosa ou de agitação infernal." Essa convicção de que a vida não é feita só de grandes extremos e sim da acumulação gradual e insensível de fatos cotidianos e banais, que o pequeno e o opaco são mais próprios ao humano do que o grande e o luminoso, foi o que motivou Flaubert a compor o maior romance de seu século, que influenciou e influencia escritores até os dias de hoje. Por isso “Madame Bovary” é uma mistura de hipocrisia, pequenas misérias e sonhos medíocres. É um romance baseado na “normalidade".  
         Ainda sobre a modernidade do livro, um dos fatores importantes a ser levado em consideração na análise do romance diz respeito ao estilo. O autor opera uma revolução estética uma vez que elabora com extrema sofiticação e apuro a forma para tratar de um assunto considerado nada sofisticado, muito distantes dos grandes temas abordados pelo movimento literário precedente, o Romantismo. Outro ponto relevante no romance é o questionamento que o próprio faz para si mesmo sobre a função da literatura. Flaubert se vale do romantismo de Emma (influenciado por suas leituras) como um objeto realista e determinante para a condução das ações da personagem.
Podemos afirmar que o séc. XIX foi o apogeu da literatura. Em um contexto onde as mudanças sociais eram cada vez mais rápidas e significativas a literatura realista foi uma “resposta a uma certa crise nas relações dos indivíduos com a tradição que, até então, amparava suas escolhas de vida e sua visão de mundo.” (1) Dentro desse contexto, essa literatura confrontava as mulheres oitocentistas com duas realidades: o modo de vida burguês, as funções domésticas e o papel que lhes era destinado dentro daquela sociedade e um espaço onde era possível entrar em contato com “desejos desviantes da norma, e o desajuste dos sujeitos em relação à tradição, ao desejo do Pai, aos lugares que se espera que os sujeitos/leitores/personagens, ocupem na trama simbólica.” (2)
         Com Emma, Flaubert corporificou e criou mecanismos de identificação com o público consumidor dessa literatura - mulheres, em sua grande maioria - e proporcionou “às vezes consolo, às vezes confirmação para o desamparo dos leitores seus contemporâneos.” (3). Freudiano “avant la lettre” ele fez de sua personagem uma representação das mulheres de seu tempo, representação esta que culminou com a figura das histéricas tratadas por Freud meio século depois do lançamento de “Madame Bovary”.


Agnès Varda

         Em “As duas faces da felicidade”, ao contar história de um homem casado, pai de duas crianças, que se envolve em uma relação fora do casamento e deseja manter as duas mulheres como uma maneira de obter “a felicidade plena”, Agnès Varda, assim como Flaubert, volta seu olhar sobre a mediocridade do cotidiano dos homens comuns para dizer algo de seu pensamento sobre a vida.     Assim com o romance oitocentista, forma e conteúdo trazem mensagens diferentes. Existe um contraste entre o drama encenado e a leveza da técnica utilizada, característica da Nouvelle Vague, assim como a luminosidade das imagens e, sobretudo, a aparente falta de julgamento colocado sobre as ações dos personagens.
         A harmonia na composição dos quadros, na combinação das cores, nos rostos e gestos dos personagens remetem a uma idealização característica do melodrama, que nesse caso, vem em uma referência clara à tv e aos melodramas Hollywoodianos dos anos 50. Na primeira parte do filme, os personagens parecem habitar as páginas dos livros que inspiravam os devaneios de completude e felicidade proporcionados por um casamento perfeito ambicionado por Emma Bovary.
         Mas no filme, Varda coloca esse desejo de completude absoluta, sobretudo no personagem masculino. Ao não conseguir abrir mão de nenhuma das mulheres, ele explica à amante: “Sinto amor pelas duas. A felicidade se acumula (...) Thérese é como uma planta vivaz e você é como um animal em liberdade. E eu amo a natureza.” (4) Sua felicidade só é completa com a união das características distintas das duas, que ao contrário de se anularem, complementam-se .
          A felicidade perseguida é filmada em cores primárias, como os sentimentos dos personagens: inteiros, violentos. Essa vida idealizada, colorida e harmoniosa contrasta com a ironia e amargura da descoberta da impossibilidade da coexistência desses dois universos. E ao final, a felicidade da família é filmada com as cores pálidas do outono. Uma Felicidade que não é alegre, longe daquela idealizada nos romances.

(1) Maria Rita Kehl, A constituição literária do sujeito moderno (2) Maria Rita Kehl, A constituição literária do sujeito moderno (3) Maria Rita Kehl, A constituição literária do sujeito moderno (4) Transcrição da legenda do filme “ As duas faces da felicidade





Um comentário:

  1. Excelente Karina.

    Uma "ponte" de 100 anos entre duas subjetividades em relação com o tempo presente.

    É verdade, os dois filmes mostram situações individuais imersas no contexto histórico do seu tempo e de que modo este tempo "pesa" em nós.

    O filme de Varda é belíssimo nisto: é uma colagem irônica de uma certa felicidade, hiper realista como só a publicidade consegue mostrar: de quanta beleza e felicidade posso gozar? De toda, diz a publicidade.

    E, ao mesmo tempo, como pode um sujeito não reagir ao seu tempo presente, não ser sensível a ele? A sensibilidade de François o leva a ter dois amores e inventar para si uma nova e melhor forma de amar. Ao propo-la para a esposa, surge o conflito. Abruptamente, Varda nos lembra que nossa relação com o tempo presente é cheia de conflitos, mas, ao mesmo tempo, é apenas nele que se poderá enfrenta-los e eventualmente supera-los.

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