Eu olho esta
folha de papel diante de mim e percebo a sua forma e a sua cor. Ela se oferece
ao meu olhar como existente e constato que o seu ser, o que ela é, não depende
de mim, ela é um outro que não sou eu. Ela está presente diante de mim mas é inerte. Esta forma inerte pode ser
observada, analisada e compreendida como se quiser, mas não se alterá o fato de
que ela é uma coisa que não depende da minha espontaneidade nem de qualquer
impulso meu em sua direção.
É praticamente
com as palavras acima que Sartre inicia um livro chamado A Imaginação. Ele explica que há um fato fundamental da nossa
consciência que é ela ser intencional,
ou seja, ela não é inerte, ela é ativa e “impulsiva”. Todos os atos da
consciência nos seus contatos com o mundo são, então intencionais, ou seja, a
nossa consciência sempre é consciente de alguma coisa. Podemos estar
conscientes desta alguma coisa de vários modos (intencionais): ora vejo esta
folha como simples papel que serve para queimar na lareira, hora a vejo
contendo as minhas idéias, ora ela, vazia, me lembra da minha incapacidade de
escrever.
Sartre nos
recorda deste fato fundamental da consciência para combater um modo de pensar
segundo o qual os objetos do mundo são captados pelos nossos sentidos e
transformados em algo semelhante à nossa mente, como uma aranha transforma o
corpo das suas presas na sua própria substância envolvendo-as lentamente na sua
baba. Ou, mais modernamente, como os computadores transformam filmes, fotos,
voz e texto sempre na mesma coisa, na mesma substância: arquivos cheios de bits.
Não podemos fazer entrar os objetos dentro da nossa consciência fazendo-os
semelhante a ela simplesmente porque a consiência e os objetos do mundo são de
naturezas diferentes.
Assim, Sartre
mudará o approach: a nossa
consciência se dirige para o mundo de forma intencional: ora esta folha de
papel representa a mais pura brancura, ora foi uma árvore cuja morte
lamentamos, ou então a minha incapacidade de nela escrever as minhas idéias:
“Eis que, de repente, estas famosas reações ‘subjetivas’, ódio, amor, temor,
simpatia, que flutuavam dentro da salmora malcheirosa do Espírito, saem:
[agora] elas são apenas maneiras de descobrir o mundo”[1].
A
intencionalidade não apenas uma forma como a consciência conhece o mundo: ela é a situação de ser dos seres humanos. Em consequência não é apenas o
nosso modo de conhecer o mundo, mas é o nosso desejo que está implicado
fundamentalmente neste modo de ser. Pode-se dizer de modo eloquente que o nosso
desejo é do mundo.
Mas então,
primeiro: sabemos que os objetos “coisas” são de uma natureza diferente da
nossa consciência (eles não tem este impulso, esta intencionalidade, estão numa
unidade tranquila de si para si. São “inertes”). Logo, eles sempre resistirão
ao nosso ato de conhece-los: nunca os conheceremos totalmente.
Segundo e mais
importante aqui, o mundo é povoados de outras consciências intencionais. O
mundo está povoado de outros seres humanos para os quais eu dirijo o meu desejo
(os meus afetos, expectativas e projetos). Estes outros seres também dirigem
seus desejos livremente para mim e
outros. É assim que emerge e se coloca a questão da liberdade e do conflito
entre sujeitos inerente a ela. O outro é livre para me constituir com um objeto
de seus afetos-projetos, e desta sua liberdade não posso fazer nada. Mesmo que
eu tenha projetos a respeito dela, mesmo que deseje respeita-la, isto já seria
um projeto meu a respeito de algo alheio, o que constituiria uma tentativa de
violação da liberdade do outro. Daí podemos afirmar que “por mais conflituosa
que seja a relação entre pessoas, tem-se que admitir que esse conflito deriva
da radicalidade da liberdade, e toda relação concreta é conflito de duas
liberdades concretas”[2].
Trata-se de um
patético mas muito humano jogo de forças entre consciências livres. Aqui há um
fato importante que diferencia Sartre de Hegel: Sartre reconhece que “a
intuição genial de Hegel é a de fazer-me dependente do outro em meu ser. Eu sou
um ser Para-si[3] que só é
Para-si por meio de outro. Portanto, o outro me penetra em meu âmago”, mas “A
grande mola-mestra da luta das consciências [-de-si] é o esforço de cada uma
para transformar a certeza de si em verdade. E sabemos que esta verdade só pode ser
alcançada na medida em que minha consciência torna-se objeto para outro”[4].
Para Sartre, Hegel ainda coloca problema da consciência em termos de
conhecimento (relação sujeito-objeto): a medida do ser do homem é o conhecimento que temos dele, o que o
reduziria a um objeto-para-ser-conhecido.
Sartre não
concorda com isto: para ele, deve existir uma relação de interioridade de ser a ser sem que a intermediação
(externa) do conhecimento: É o Mit-Sein, de Heidegger; ou seja, o ‘ser-com’.
Assim, “a característica de ser da realidade-humana é ser o seu ser com os outros. Não se trata de um acaso;
eu não sou primeiro ... para
encontrar o outro depois: trata-se de uma estrutura essencial do meu ser”[5].
Sartre quer dizer que não haveria uma sequencia do tipo eu, em seguida o outro,
em seguida nós. Ao contrário, o Eu emerge juntamente e na relação com o outro.
Ou ainda, o ‘ser-com’ implica numa relação de ser a ser e não uma relação ser a
objeto. Então não é que eu primeiro seja um ser que existe independente e que
em seguida entra em relação com os outros. Para Sartre, poder falar deste ser
que eu sou implica em falar da relação deste ser com os outros. É só daí que
será possível falar do que é o meu ser. Assim, o “ser com o outro” consiste na estrutura fundamental do meu ser, ou
seja, é o fundamento da relação intersubjetiva. A realidade humana é
“Para-si-Para-outro[6]”.
Se o outro não
é objeto, o que quer que eu seja depende fundamentalmente deste outro e eu tomo
este outro como sujeito, abruptamente Sartre nos envia para o
mundo das nossas vivências, para o mundo cotidiano dos contatos humanos: “é na
realidade cotidiana que o outro nos aparece”. É exatamente porque o outro não é objeto (é sujeito) é que ele é livre. E se meu ser se constitui no outro, ele só poderá se constituir num outro-sujeito, ou num outro-livre, o que é o mesmo. Desta forma, a liberdade do outro é condição fundamental para a constituição do meu ser. Isto terá, como se pode imaginar, consequencias importantes ao se pensar no amor.
Para Sartre, o
outro aparece para mim através do seu olhar. É através desta figura do olhar
que se desenvolve a dialética da relação intersubjetiva. O “Para-outro” nada mais é do que este
outro que me olha, e, portanto, que me valora, que forma uma imagem de mim, que
me determina. Ele é livre para me
constituir como objeto. De meu lado, posso sempre tentar colonizar o olhar do
outro em função dos meus interesses e desejos agindo sobre a sua liberdade, sou
livre para tentar este projeto. Trata-se de um conflito e esta relação será
sempre conflituosa: “o ser-para-outro é estruturalmente conflituoso. Os
antagonismos concretos, de qualquer alcance, derivam deste traço ontológico,
que torna infernal as relações humanas”[7].
Sartre
adota uma perspectiva atéia para a existência humana. Não se trata de negar a
Deus, mas apenas de visar um destino que faça sentido ainda nesta vida aqui, e
que eu procure dar sentido para o meu ser nesta
vida aqui, sem levar em conta a existência ou não de Deus e de uma
transcendência. Nós nascemos e portanto existimos. Em princípio é ser só isto,
de modo que cada um tem a tarefa individual de fazer um sentido (uma essência)
para a sua existência. Daí a frase famosa: “a liberdade é existência, e a
existência precede a essência”. Em existência somos um ser para a morte fadado
à liberdade. A essência se faz. Daí outra frase famosa, de Beauvoir: “Não se
nasce mulher, se faz mulher”.
Nossos
projetos neste mundo serão sempre incompletos pois temos necessariamente que
colocá-los em marcha num mundo povoado por outros projetos.
É dentro deste
quadro que podemos inserir a questão do desejo em Sartre.
Sendo o
homem uma singularidade que se realiza no mundo (i.e. vivendo), o desejo não
poderia um dado natural, nem um dado psiquico irredutível externo a cada
sujeito, mas ele emerge junto com o sujeito que emerge no mundo. E já podemos
entender que este sujeito emerge no mundo marcado pela falta, ou pela
negatividade: ele existe, e é só isto. Há uma essencia (um ser – o ser de cada
um de nós) vazia neste fato. Este ser de cada um de nós só poderá tecer a sua
essência ao longo desta vida. Vivendo.
Sartre
tematiza o desejo e o amor como parte das relações concretas com o outro, juntamente com o sadismo, o ódio o masoquismo e a indiferença.
O desejo não indica um Eu já constituído ou numa etapa da sua formação, mas antes um Eu que estará sempre e eternamente em processo de tomar forma na sua relação com o mundo. Nada é primeiro aqui, exceto a liberdade. E a liberdade é o ser que se faz falta, ou o ser que se faz na falta de ser[8]. Pois a liberdade não é um atributo com o qual nascemos (um universal do qual todos compartilhamos), mas ela decorre do fato de que CADA UM DE NÓS existe, então a liberdade é uma existência apenas, que se fará a medida em que vivemos no mundo, em função do mundo onde vivemos, na medida em que orientamos nossas vidas no mundo singular de cada um.
O desejo não indica um Eu já constituído ou numa etapa da sua formação, mas antes um Eu que estará sempre e eternamente em processo de tomar forma na sua relação com o mundo. Nada é primeiro aqui, exceto a liberdade. E a liberdade é o ser que se faz falta, ou o ser que se faz na falta de ser[8]. Pois a liberdade não é um atributo com o qual nascemos (um universal do qual todos compartilhamos), mas ela decorre do fato de que CADA UM DE NÓS existe, então a liberdade é uma existência apenas, que se fará a medida em que vivemos no mundo, em função do mundo onde vivemos, na medida em que orientamos nossas vidas no mundo singular de cada um.
O amor é tematizado como uma atitude para com o outro. É uma tentativa de de realizar uma
unidade com o outro, posso projetar a mim na presença do outro e querer
“assimilar a alteridade do outro”, assimilar os seus projetos para comigo.
Trata-se, para Sartre, de um projeto irrealizável: seria a realização de dois
projetos de unidade numa única transcendência, o que faria desaparecer o
caráter original de cada ser humano que é a liberdade: cada um estaria alienando a sua liberdade neste ser uno da transcendência.
Este projeto de
unificação será antes de tudo fonte de conflito e esta unidade tranquila de duas almas não existe. Mas para Sartre esta unidade é “o
ideal do amor” e o amor é “o conjunto dos projetos pelos quais viso realizar
este valor”. Tais projetos nos colocam em conexão direta com a liberdade do outro: se desejo esta unidade e se a liberdade do outro é o fundamento do meu ser, seria contraditório pensar em possuir um outra pessoa.
O que
podemos pensar dos dois mendigos atados, acorrentados (bound beggars, méndiants
enchâinés, vagabondi legati, mendigos atados) do belíssimo filme Dolls
de Takeshi Kitano? Eles vagam. Matsumoto deixa a noiva no altar por Sawako. E
começam a vagar, atados.
Não se
encantam com a natureza que os circunda, são indiferentes às pessoas à sua
volta.
Sawako não
logra se matar e se deixa levar por Matsumoto e então começam a vagar. Aparentemente
ela aliena a sua liberdade para um outro deixando-se atar e conduzir pela
corda. Mas a liberdade nunca é completamente alienável, pois desejar aliena-la
ainda é um projeto livre pois o desejo é sempre o desejo de um sujeito. Nunca é possível possuir um outro
deixando-se possuir. Para Sartre “a estratégia de possuir o outro fazendo-se
possuir por ele necessariamente fracassa diante da dualidade insuperável de
duas liberdades ou de duas consciências que não podem deixar de ser livres”[9].
Matsumoto
conduz Sawako pela corda. Aparentemente anula a sua subjetividade reduzindo-a a
um mero objeto aos seus cuidados. O seu gozo parece ser cumprir uma tarefa que
decidou se incumbir. Ele sacrificou a sua carreira e uma vida em sociedade pelo
amor de Sawako por ele. E, ao mesmo tempo, ele a conduz. Ela parece ter
atingido o seu objetivo: arriscou a vida num suicídio e logrou trazer Matsumoto
para perto de si. Daí em diante nada mais parece lhe importar. Feito este pacto amoroso, eles vagam,
indiferentes ao resto do mundo. Honra, glória e fortuna não são mais que montes
de areia, dizem os bonecos do teatro.
Matsumoto e Sawaki não conseguem se casar, o laço que os une parece ser anterior ao vínculo social. Presos a algo mais primitivo, eles são apenas este vínculo. Há uma cena em que eles se vêem casando, mas isto não acontece de fato. Eles não concretizam nenhum vínculo socialmente aceito. Seria necessário entrar em relação com um terceiro, aquele que os casaria, para isto. O ato do casamento só se dá através da palavra, que tem o poder performático: ela transforma e portanto tem o poder da ação. Mas esta ação requer que haja um terceiro. A dupla parece não entrar neste estágio de vínculos com um outro, permanecendo no vínculo original.
O filme termina com ambos lado a lado, pendurados e inertes. Os projetos de dominação recíprocos levaram a este impasse. No mundo de Sartre nenhuma consciência triunfará sobre a outra, nenhum projeto de dominação será completo ou permanente. Nenhuma liberdade é completa e a liberdade está implícita em toda relação de dominação. Mas para ele é possível superar eticamente este conflito através de compromissos que levem em conta a radicalidade da liberdade humana, que a essência das relações entre consciências é o conflito. O sentido destes compromissos não se encontram já dados no mundo. Não adianta vagar em busca deles. Para Sartre eles devem ser construídos historicamente.
Se no limite absoluto da liberdade, ou no ápice onde as liberdades podem se encontrar está a fonte dos valores (os compromissos que se encarnam eticamente), Sawako quer situar-se para além de todo sistema de valores, exigindo que o amado "sacrifique em seus atos a moral tradicional" ansiosa por saber se o amado trairia os seus amigos por ela, roubaria por ela, mataria por ela.
Matsumoto e Sawaki não conseguem se casar, o laço que os une parece ser anterior ao vínculo social. Presos a algo mais primitivo, eles são apenas este vínculo. Há uma cena em que eles se vêem casando, mas isto não acontece de fato. Eles não concretizam nenhum vínculo socialmente aceito. Seria necessário entrar em relação com um terceiro, aquele que os casaria, para isto. O ato do casamento só se dá através da palavra, que tem o poder performático: ela transforma e portanto tem o poder da ação. Mas esta ação requer que haja um terceiro. A dupla parece não entrar neste estágio de vínculos com um outro, permanecendo no vínculo original.
O filme termina com ambos lado a lado, pendurados e inertes. Os projetos de dominação recíprocos levaram a este impasse. No mundo de Sartre nenhuma consciência triunfará sobre a outra, nenhum projeto de dominação será completo ou permanente. Nenhuma liberdade é completa e a liberdade está implícita em toda relação de dominação. Mas para ele é possível superar eticamente este conflito através de compromissos que levem em conta a radicalidade da liberdade humana, que a essência das relações entre consciências é o conflito. O sentido destes compromissos não se encontram já dados no mundo. Não adianta vagar em busca deles. Para Sartre eles devem ser construídos historicamente.
Se no limite absoluto da liberdade, ou no ápice onde as liberdades podem se encontrar está a fonte dos valores (os compromissos que se encarnam eticamente), Sawako quer situar-se para além de todo sistema de valores, exigindo que o amado "sacrifique em seus atos a moral tradicional" ansiosa por saber se o amado trairia os seus amigos por ela, roubaria por ela, mataria por ela.
[1]
SARTRE, Une idée de la phénomenologie de
Husserl: l’intentionalité. O conceito de intencionalidade é de Husserl, filósofo e matemático theco
(1859-1938), tido como o fundador da fenomenologia contemporânea. A
fenomenologia pode ser entendida como um terceiro entre o idealismo e o
empirismo. Husserl afirmou a harmonia ontológica da consciência e da coisa (os
dois seres – homem e mundo tem igual valor). Em 1933 Sartre encontraria na
fenomenologia de Husserl um modo de descrever “esta árvore”, “este indivíduo”,
“esta discussão à mesa de um café” num modo que seria – ao menos para ele – não
psicológico. Na literatura seus personagens se definiriam, então, não apenas
por um vivido psicológico, mas fenomenológico também.
[2] SILVA,
Franklin Leopoldo, Ética e literatura em
Sartre.
[3] Para-si: uma
forma inocente de sujeito independente que coloca o mundo como objetos em torno
de si.
[4] SARTRE, O ser e o Nada.
[5] Idem.
[6] Para-outro:
é o outro me olhando e como me olha. Ao fazer isto há um processo de
constituição do que sou.
[7] Silva, op.
cit.
[8] A liberdade
é precisamente o ser que faz falta de ser. Mas, uma vez que o desejo ... é
idêntico à falta de ser, a liberdade só poderia surgir com ser que se faz
desejo de ser”. O Ser e o Nada, p.
694-5.
[9] Silva, idem.
É Mario, sim senhor! Então...do Mit-Sein pra lá complicou..não dá para simplificar isso? abs
ResponderExcluirMarcos